O esporte para pessoas com deficiência teve seu início após a Primeira Guerra Mundial, como forma de tratamento de soldados que adquiriram impedimentos permanentes. No final da Segunda Guerra Mundial, houve um novo impulso no seu desenvolvimento, principalmente a partir de tratamentos desenvolvidos no “Stoke Mandeville Hospital”, na Inglaterra. Nessa época, ainda persistia a visão do esporte como auxiliar ao tratamento médico. A partir dos jogos anuais desenvolvidos nesse hospital, o movimento ganhou força, culminando com a criação das primeiras Paralimpíadas, em 1960, na cidade de Roma. A Paralimpíada é um evento realizado logo após as Olimpíadas, do qual participam somente atletas com deficiência.
No Brasil, o esporte adaptado foi introduzido no final da década de 50. A participação brasileira em eventos esportivos internacionais para pessoas com deficiência ganha expressão desde então, tendo o país alcançado o sétimo lugar na última Paralimpíada, em 2012, na cidade de Pequim.
Essa evolução do esporte acabou influenciando também o ambiente da escola. Inicialmente, os estudantes com deficiência não participavam das aulas de educação física. Eram, muitas vezes, dispensados dessa disciplina. Para praticar atividades físicas, esses estudantes precisavam buscar alternativas em projetos específicos de educação física.
Atualmente, a educação física escolar está evoluindo para uma visão inclusiva, que pressupõe o convívio e a participação de todos os estudantes nas mesmas atividades. Essa visão se relaciona com as atuais convenções internacionais na área de direitos humanos. A Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, documento elaborado pela ONU e que tem valor de emenda constitucional, no Brasil, no parágrafo 5 (alínea d) de seu artigo 30, afirma:
Para que as pessoas com deficiência participem, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, de atividades recreativas, esportivas e de lazer, os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para:
d) Assegurar que as crianças com deficiência possam, em igualdade de condições com as demais crianças, participar de jogos e atividades recreativas, esportivas e de lazer, inclusive no sistema escolar;
Eliana Lúcia Ferreira, professora da Universidade Federal de Juiz de Fora (Minas Gerais), comenta essa visão:
Tínhamos uma escola que pensava em uma educação física que não considerava o aluno diferenciado. Depois tivemos a educação física adaptada, que permitia que esse aluno que tinha habilidades motoras pudesse ser um grande atleta. Mas a escola não é para grandes atletas. A escola é para todos. Temos que perceber que o professor de educação física não pode ser mais só professor de quadra. Esse professor tem que retomar a discussão dos princípios pedagógicos de cada atividade, e isso tem que ser discutido de uma maneira mais intensificada.
Para entendermos o contexto da educação física voltada aos estudantes com deficiência, devemos partir de uma área do conhecimento chamada Educação Física Adaptada. Dentro dessa área, a práxis se divide em duas modalidades: a educação física adaptada, propriamente dita, e a educação física inclusiva.
Na modalidade educação física adaptada, os estudantes com deficiência praticam atividades físicas separadamente de seus colegas. Ou seja, não participam das mesmas atividades que os demais estudantes. Na educação física inclusiva, todos participam das mesmas atividades propostas. Para isso, cabe ao professor planejar as aulas de acordo com as especificidades dos estudantes de cada turma.
A prática das duas modalidades requer a promoção da acessibilidade. Um ambiente acessível, que oferece iguais oportunidades de uso, proporciona a inclusão social e a valorização das diferenças, estimula o desenvolvimento de habilidades e valoriza as competências individuais.
Atualmente, o principal conceito ligado à acessibilidade numa perspectiva inclusiva é o de desenho universal. De acordo com esse conceito, o desenho de produtos, serviços e ambientes deve ser pensado com a premissa de permitir a utilização pelo maior número de pessoas possível, com as mais variadas características e habilidades, sem que haja a necessidade de adaptações ou desenho especializado.
A educação física adaptada tem como objetivo o desenvolvimento afetivo, cognitivo e psicomotor dos estudantes com deficiência. No início, essa modalidade baseava-se na prática dos esportes adaptados, cuja origem são os esportes convencionais. Conforme já vimos, procurou-se permitir que pessoas com deficiência participassem de atividades esportivas. Nesse sentido, foram criadas adaptações para alguns esportes, pensadas a partir de cada tipo de deficiência. Para as pessoas cegas, por exemplo, um dos esportes criados foi o “futebol de cinco”. Nessa atividade, as principais alterações são: o uso de bola com guizo e a participação de goleiros e chamadores sem deficiência visual, que têm o papel de orientar os outros jogadores.
Como outro exemplo, podemos citar o basquete em cadeira de rodas, praticada por pessoas com alguma deficiência físico-motora. Nesse esporte, as cadeiras são adaptadas e padronizadas, conforme previsto na regra. A cada dois toques na cadeira, o jogador deve quicar, passar ou arremessar a bola. Atualmente, existem várias outras atividades também pensadas exclusivamente para estudantes com deficiência e que integram a área da educação física adaptada.
A Educação física inclusiva tem como objetivo o desenvolvimento afetivo, cognitivo e psicomotor não só dos estudantes com deficiência, mas de todos os estudantes. O convívio é um fator fundamental para que esse objetivo seja atingido. De acordo com José Guedes, diretor do Centro de Atendimento Educacional Especializado Pró-labor, situado em Goiânia (Goiás):
A educação física tem primeiro que romper com o paradigma da educação física esportivista, seletista. É uma raiz que nós trazemos desde o regime militar. A educação física parte do princípio olímpico que é do mais forte, do mais ágil e do mais rápido. A pessoa com deficiência não se enquadra nesse perfil. Automaticamente, está fora. A pessoa acima do peso não se enquadra nesse perfil. A pessoa que não tem uma habilidade motora não se encaixa nesse perfil. Então você exclui uma série de pessoas. A aula de educação física inclusiva não vai ser um espaço de formação de atletas ou de equipes para disputar competições escolares. A educação física é um componente curricular onde, obrigatoriamente, todos os meus educandos devem desenvolver determinadas habilidades, inclusive habilidades motoras ou esportivas. Então, a aula de voleibol não vai ser para o mais alto ou o mais forte. Na aula de voleibol, todos meus alunos têm que praticar, vivenciar e sentir o voleibol. A aula de futebol, da mesma forma, não deve separar homens e mulheres. Todos têm que participar, independentemente da sua condição.
Ana Paula Ruggiero acredita que não devemos pensar a educação física só como esporte, mas como cultura corporal. Carmem Suzana Makhoul, assessora da Gerência de Educação Especial de Goiás, reforça tal visão:
Uma educação física, na perspectiva inclusiva, procuraria trabalhar conhecimentos da cultura corporal e não o desenvolvimento das aptidões físicas ou das habilidades motoras.
Essa modalidade dialoga com questões de direitos humanos, sendo orientada pela equiparação de oportunidades e respeito às diferenças. Além disso, compartilha a visão contemporânea de educação física que rompe com o foco no esporte competitivo. O horizonte da educação física inclusiva é, portanto, a educação física para todos.
A prática da educação física inclusiva requer a flexibilização de alguns elementos, como recursos e regras. Recursos são estruturas e suportes necessários para o desenvolvimento das atividades que compõem a educação física, tais como: equipamentos, infraestrutura espacial, equipe de apoio e intérpretes. Já as regras podem ser definidas como um conjunto de diretrizes, normas e procedimentos que definem os objetivos, as permissões e as restrições de uma atividade.
Um professor de educação física, ao avaliar os estudantes com quem vai trabalhar, pode precisar flexibilizar tanto as regras quanto os recursos que utilizará. Essa decisão depende prioritariamente da avaliação que esse professor fez dos estudantes que compõem cada turma.
A experiência da educadora Ana Paula Ruggiero serve para ilustrar a ideia da flexibilização de recursos e regras, de forma a permitir a plena participação de todos os estudantes em suas aulas. Ana Paula tem desenvolvido uma série de atividades de educação física no Colégio Colemar instalada na cidade de Goiânia/GO, ela propôs aos seus estudantes a criação de um novo esporte. Para isso, dividiu a turma e pediu para que cada grupo inventasse uma prática que fosse baseada nos fundamentos do voleibol.
Será que é possível que, em grupos, vocês tentem criar um novo esporte usando esses fundamentos do vôlei, usando a rede, usando a bola? O que dá para ser construído?’ Eles acharam o máximo, mesmo porque, na história tivemos esportes que foram criados por professores de educação física. O que eu faço é criar momentos em que, juntos, eles possam pensar e repensar essas regras, a partir do que eles já conhecem, a partir da história do esporte que ele tem no seu corpo, na sua vida. E cada um traz um pouquinho do que conhece. Assim, constroem um jogo novo. Essa é a ideia. Às vezes eles criam um jogo que não dá certo, e aí trocam ideia na hora, ‘não, mas se fizermos assim; vamos fazer assim, vamos tentar de outra forma’. Isso é muito rico, isso é muito valioso para mim.
Faziam parte dessa turma estudantes surdos. Após ser perguntada sobre como garantir que a criação do novo jogo contemple as especificidades de cada estudante, Ana Paula explica que não é necessário explicitar essa questão aos alunos no momento em que apresenta a proposta da aula. Segundo ela, o fato de o estudante com deficiência participar do processo de invenção, por si só já garante que os recursos e as regras serão pensados de maneira a permitir que todos integrem a atividade:
É um jogo em que, naturalmente, todos vão ter acesso porque eu já tenho o aluno surdo ali, pensando junto com os outros, na hora da criação. A contribuição dele já está ali.
Outro exemplo de flexibilização de recursos e regras pode ser observado no relato de experiência de Júlio César Surian, educador da rede municipal de ensino de São Paulo:
A turma de 5ª série era numerosa, 40 alunos, extremamente agitados, com necessidades diversas (carências) e dificuldade de concentração. A aluna não tinha os membros superiores nem a mão esquerda, sendo a direita junto ao ombro, com três dedos apenas. Dificilmente deixava de participar das aulas de educação física, pois sua habilidade com os pés e com as pernas sobressaía aos demais alunos. As atividades eram organizadas de forma a possibilitar a sua participação, as regras, mudadas, e os exercícios, adaptados à sua deficiência. Sua maior dificuldade era jogar basquetebol, devido ao tamanho da bola e à deficiência na marcação. Mudei o planejamento: jogávamos com bolas menores e ela utilizava os pés para arremessar para o cesto.
Como vimos, a educação física nasceu associada a uma visão homogeneizadora do ensino, pautada pela busca do alto rendimento e pela competição. Esse modelo resultou na exclusão sistemática dos estudantes que não atingiam o desempenho esperado ou não se enquadravam no perfil físico buscado pelos educadores. Durante muito tempo, os estudantes com deficiência fizeram parte desse processo de exclusão, com exceção às atividades de educação física adaptada, as quais eram voltadas exclusivamente para esse público.
Atualmente, estamos acompanhando o surgimento da educação física inclusiva que pressupõe a participação de todos os estudantes em uma mesma atividade. Essa proposta, alinhada com a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, implica no entendimento das especificidades de cada aluno e na flexibilização de recursos e regras das atividades físicas. Isso envolve não só alterações nas práticas físicas existentes, como também a criação de novas atividades. O desenvolvimento desse novo paradigma pressupõe a eliminação de barreiras e a ressignificação dos objetivos da educação física.
Saiba mais sobre o tema
• Conheça práticas de educadores que desenvolveram projetos de educação física como estratégia para a inclusão de estudantes com deficiência na escola.
• Leia o Estudo de caso e confira o documentário sobre a Educação Física Inclusiva no Brasil:
Luiz Henrique de Paula Conceição é mestre e graduado em psicologia pela Universidade de São Paulo (USP). Atua como pesquisador e coordenador do programa de formação em educação inclusiva no Instituto Rodrigo Mendes.
Rodrigo Hübner Mendes é fundador do Instituto Rodrigo Mendes, organização que desenvolve programas de educação inclusiva. É mestre em administração pela Fundação Getulio Vargas (EAESP), membro do Young Global Leaders (Fórum Econômico Mundial) e Empreendedor Social Ashoka.
Artigo originalmente publicado pela Revista Sentidos, edição 81 (mar-abr/2014)
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