Um olhar sobre a educação inclusiva em Portugal

Desde o final dos anos 60 do século passado, Portugal tem encorajado a educação de estudantes com deficiência em meios educativos regulares. Como é habitual, essas primeiras tentativas do que então se chamava “integração” começaram com pessoas com deficiência visual e auditiva. Após a Revolução dos Cravos, que em abril de 1974 pôs fim à Guerra Colonial e ao regime de ditadura que o país vivia, todo esse impulso cresceu, e a integração passou a beneficiar cada vez mais políticas que potencializaram sua disseminação. Dessa evolução, surgiram as equipes de educação especial, formadas por professores que apoiavam a matrícula e o atendimento de todos alunos – com ou sem deficiência – na escola regular.

Em 1991, publica-se uma lei que organiza o atendimento às Necessidades Educativas Especiais (NEE)¹. Essa norma representa um grande avanço por consagrar a possibilidade de existirem diferentes currículos em função das condições de deficiência e por indicar a escola comum como resposta adequada para a educação de todos. Em 1997, e por influência direta da Declaração de Salamanca proclamada pela UNESCO, começa a ser usada na legislação a palavra “inclusão”. A essa altura, já existia um sistema de educação especial bem desenvolvido em Portugal e milhares de estudantes com diversos tipos de deficiência (nomeadamente deficiência intelectual) a serem educados na rede regular.

Em 2006, criam-se quadros específicos nas escolas para professores de educação especial e em 2008 funda-se a Associação Nacional de Docentes de Educação Especial (Pró-Inclusão). No mesmo ano, é instituída a legislação que organiza os apoios educativos para a inclusão de alunos com NEE. Como fruto desse esforço continuado, Portugal se tornou um dos países com as mais elevadas porcentagens de pessoas com Necessidades Educacionais Especiais em escolas comuns, com uma taxa de cerca de 98%.

O sistema de educação de Portugal

Não é possível falar das políticas de educação inclusiva de Portugal sem, antes, referir-se às políticas do sistema educativo regular para conhecê-lo um pouco melhor. Destaco cinco breves pontos:

  • A educação é obrigatória até aos 18 anos. O ensino básico organiza-se em três ciclos: de quatro, dois e três anos, respectivamente. A etapa secundária (que no Brasil se designa por ensino médio) é de três anos;
  • Todas as escolas públicas funcionam em período integral. Elas encontram-se associadas em agrupamentos, isto é, conjuntos de unidades de diferentes níveis de ensino geograficamente próximas e geridas conjuntamente;
  • Os professores possuem, ao menos, mestrado e são contratados por concurso nacional. Em início de carreira, eles recebem um salário pouco acima dos mil euros (R$ 4.000,00) e que pode chegar até os 2.500 euros (R$ 10.000,00) até a aposentadoria, que ocorre aos 65 anos de idade com, pelo menos, 40 de serviço;
  • Portugal é um dos países que mais rápida e consistentemente aumentou a porcentagem de estudantes com bom desempenho em provas transnacionais como o Pisa;
  • O país defronta-se, apesar de todas essas medidas, com um elevado insucesso escolar e taxas de abandono no ensino médio, que têm vindo a merecer programas específicos.

Planos individualizados

Atualmente, Portugal dispõe de um sistema de educação especial que se desenvolve, como vimos, de acordo com modelos de educação inclusiva, implicando que todas crianças e adolescentes em idade escolar devem ser matriculadas na rede regular. Esse modelo abrange, presentemente, cerca de 75.000 alunos. Quando chegam à escola, ou suas deficiências e dificuldades específicas já são de conhecimento dos educadores, ou essas características são identificadas na unidade. Sendo sinalizadas, deverão ser avaliadas e, segundo a legislação, elabora-se um plano educacional individualizado (PEI) no prazo máximo de 60 dias.

O documento é formulado com recursos das equipes multidisciplinares e com colaboração do docente de educação especial, mas é de responsabilidade do educador regular assegurar a clara filiação do estudante ao ambiente educacional e não à uma estrutura “à parte”. O fato de ser o professor da sala comum o responsável pela elaboração do PEI é um fator importante de inclusão e de responsabilização da escola pelo sucesso de todos.

Alunos com problemas mais complexos (nomeadamente deficiência múltipla e transtorno do espectro autista) frequentam unidades específicas na escola regular. Elas têm cerca de seis educandos, um ou dois docentes de educação especial e um assistente operacional. As atividades nesse espaço ocupam uma parte do tempo letivo das crianças e adolescentes, sendo de se esperar que elas frequentem, também, as aulas regulares junto com seus colegas sem deficiência. Em casos específicos, é elaborado um Currículo Específico Individual (CEI), que usa adequações e adaptações que podem não ter como referência o currículo normal. Essas unidades especializadas não são salas especiais, dado que são espaços onde os estudantes com mais dificuldades dispõem de apoios específicos ainda que frequentem o máximo possível de aulas regulares.

Três anos antes da previsão de saída do estudante com NEE do sistema de educação, elabora-se um plano individual de transição (PIT), que vai prepará-lo para a vida pós-escolar. Esses documentos trazem uma planificação de experiências escolares e de conhecimentos sobre o meio de trabalho que tem como objetivo prevenir uma transição brusca e não-planejada.

Existem ainda os Centros de Recursos para a Inclusão (CRI’s) que são órgãos, muitas vezes sediados em antigas unidades de ensino especial, que proporcionam apoio às escolas organizando a intervenção de fisioterapeutas, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais ou psicólogos. O apoio de tecnologias digitais é prestado por 27 Centros de Recursos de Tecnologias da Informação e Comunicação (CRTIC’s), que avaliam e tratam de todos os processos conducentes à sua utilização.

Barreiras

Sem dúvida, Portugal fez um grande caminho em termos de educação inclusiva e esse percurso coloca o país entre os primeiros do mundo em índice de alunos incluídos em escolas regulares. É também de se realçar os esforços de contratação de cerca de seis mil professores de educação especial e de financiamento dos CRTIC’s e CRI’s. Hoje podemos dizer que a cultura inclusiva está bem estabelecida junto à comunidade acadêmica e às famílias.

Mas “nem tudo são rosas”. Recentemente, um relatório da ONU sobre os progressos da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência apontou que o país continua a apresentar déficit de recursos para responder de modo eficaz às necessidades desses estudantes. Encontramos ainda, assimetrias geográficas na distribuição de recursos, uma resposta insuficiente face às demandas dos CRI’s e, ainda mais preocupante, a ideia de que os alunos com deficiência são “casos especiais” e não pertencem “de corpo inteiro” à escola.

Em julho de 2015, a Pró-Inclusão organizou um grande congresso Internacional, o ISEC 2015, no qual foi proclamada a Declaração de Lisboa sobre Equidade Educativa. Esse documento, que pode ser consultado integralmente no site da Associação, inspira-nos a ir mais longe na luta pela promoção dos direitos humanos e educacionais das pessoas com deficiência e, seguros do caminho que já fizemos, a olharmos confiantes para o caminho que falta percorrer.

¹ Nota do editor: Em Portugal, o atendimento às Necessidades Educativas Especiais (NEE) considera pessoas com transtornos do espectro autista (TEA), surdo-cegueira, deficiência auditiva, deficiência visual, deficiência intelectual, limitações motoras graves, perturbações emocionais e do comportamento graves, dificuldades de aprendizagem específicas, transtornos de comunicação, traumatismo craniano, deficiência múltipla, entre outros impedimentos de saúde. Essas condições específicas são identificadas por meio de uma avaliação feita por uma equipe interdisciplinar.

 

David Rodrigues é presidente da Pró-Inclusão (Associação Nacional de Docentes de Educação Especial de Portugal), diretor da Revista Educação Inclusiva e professor de educação especial. Lecionou nas universidades do Porto, de Lisboa, dos Açores e de Coimbra, em Portugal; na Universidade de Leuven, na Bélgica e na Virginia State University, nos EUA. No Brasil, já deu aulas na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Publicou cerca de 30 livros e dezenas de artigos sobre educação inclusiva para revistas. Desde junho de 2015 é Conselheiro Nacional de Educação de Portugal.

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