Marco legal é destaque de sistema educacional português

Apesar dos desafios de implementação, especialistas elogiam legislação que busca pautar as políticas educacionais a partir do paradigma da inclusão

Um grupo de seis crianças andando pela escola junto a uma mulher adulta. Entre as crianças, há cinco meninas e um menino, todas com mochilas coloridas nas costas. A imagem mostra todas elas de costas. Fim da descrição.
Crédito: Freepik/freepik.com

Há seis anos, o governo português aprovou o Regime Jurídico da Educação Inclusiva (RJEI), por meio do Decreto-Lei nº 54/2018. O texto orientou a reforma educacional promovida por outra normativa, instituída no mesmo dia: o Decreto-Lei nº 55, que estabelece o currículo obrigatório para a educação básica e as orientações para a avaliação das aprendizagens no país. Para especialistas ouvidos pelo DIVERSA, a sequência de aprovação desses dois marcos legais sinaliza o desejo de que as políticas de educação sejam pautadas pelo paradigma da inclusão como ponto de partida, e não como um remendo a posteriori. 

A mudança implementada pelo governo português visa responder ao compromisso firmado pelo país ao assinar a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. O documento, publicado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2006, estabelece no artigo 24 que os países signatários devem assegurar um sistema educacional inclusivo em todos os níveis. 

Um dos objetivos do Decreto nº 54/2018 é estabelecer a escola inclusiva como uma prioridade nacional, a fim de garantir a “todos e cada um dos alunos” acesso a uma educação que lhes permita expressar suas potencialidades e atenda suas expectativas e necessidades – além de proporcionar a participação e o sentimento de pertencimento ao ambiente escolar.   

“Não temos escolas inclusivas porque todas as escolas são, por definição, inclusivas”, afirma David Rodrigues, membro do Conselho Nacional de Educação português e um dos principais pesquisadores sobre o tema no país. “Em Portugal, quando falamos de educação inclusiva, estamos falando de todas as pessoas. A inclusão é um valor transversal”, reforça o educador, reconhecidamente entusiasta dos dois decretos.  

Processo histórico  

Há um longo caminho percorrido na história portuguesa até chegar ao Decreto-Lei nº 54/2018, que remete aos anos 1960, época em que já era encorajada a matrícula de estudantes com deficiência em escolas regulares. A Revolução dos Cravos, que em 1974 abriu o caminho para a redemocratização, repercutiu na educação, impulsionando a integração dos estudantes com deficiência na escola comum, com o apoio das equipes de educação especial que surgiram naquele contexto.  

Nos anos 1990, o país avançou na regulamentação do atendimento às necessidades educacionais especiais até que, em 2008, foi instituída uma legislação específica sobre o apoio aos estudantes com essas necessidades.   

“O objetivo era alinhar as nossas políticas com a Declaração de Salamanca”, conta David, referindo-se ao documento da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) de 1994, que abriu caminho para a inclusão das crianças e adolescentes com deficiência na escola comum.  

Em 2006, ainda sob o paradigma da integração, por meio do Decreto-Lei nº 20, os professores da educação especial passaram a ter uma carreira própria e a integrar o quadro de profissionais das escolas. Também foram criadas as escolas de referência (regulares para alunos com e sem deficiência), com recursos humanos e materiais específicos para pessoas surdas, com deficiência visual e de atendimento precoce, que funcionam ainda hoje. 

O auge dessa trajetória são as Orientações de 2018, que trouxeram uma série de mudanças não somente para os estudantes com deficiência, mas para o sistema educacional português como um todo.  

Entre as mudanças decorrentes da nova legislação, está uma visão integral da inclusão, na qual as propostas educativas são pensadas para todos e conforme as potencialidades e especificidades de cada um – tendo ou não deficiência. De acordo com essa lógica, deixa de existir a educação especial, voltada para estudantes que têm necessidades educacionais especiais.  

+ Saiba mais sobre esse histórico em artigo de David Rodrigues, publicado no DIVERSA em 2016, antes dos decretos nº 54 e nº 55/2018. 

+ Confira o artigo Educação especial e inclusiva em Portugal: fatos e opções, publicado em 2011 na revista Brasileira de Educação Especial 

Aposta na educação em tempo integral

Mas como esse ordenamento legal se materializa no dia a dia das escolas? Para compreender isso, é preciso conhecer, ao menos em linhas gerais, a estrutura educacional em Portugal.  Pela lei, todas as crianças e adolescentes devem ser matriculados na rede regular e frequentar a escola até os 18 anos. A educação infantil, até os cinco anos, não é obrigatória. Outro aspecto importante é o fato de que todas as escolas – da educação infantil ao secundário – funcionam em tempo integral desde a implementação do programa Escola a Tempo Inteiro, em 2006.

Essa é, segundo David, uma política pública essencial para fortalecer a educação inclusiva. “A escola em tempo integral dá espaço, respiro, tempo para apoiar os alunos, para conhecê-los melhor e para trabalhar com eles na comunidade”, afirma o pesquisador.

As aulas se concentram no período da manhã. As tardes são dedicadas às atividades complementares na própria escola ou na comunidade. Também é oferecido apoio ao estudo individual. “São atividades esportivas, aulas de artes e línguas estrangeiras, entre outras. Mesmo as crianças em situação de maior vulnerabilidade econômica têm a oportunidade de participar desse ambiente”, explica Luzia Lima-Rodrigues, professora da Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Setúbal, investigadora, formadora de professores em Portugal e em outros países e diretora da Vindas Educação Internacional. “Um ambiente como esse favorece o florescimento da educação inclusiva”, complementa a pesquisadora. 

Apoio para todos que precisam

Se a educação inclusiva é um eixo que atravessa o sistema educacional, não faz sentido pensar em serviços para atender necessidades de grupos específicos. Como o ordenamento legal de 2018 aboliu essa perspectiva da legislação, em Portugal não é preciso apresentar um laudo para receber apoio na escola.

“Nosso processo de educação está muito ligado ao desenvolvimento de políticas públicas e de uma perspectiva de transformação da escola baseada não só nos estudantes com dificuldades, mas no apoio a todos os alunos que tenham necessidades”, assinala David.

Essa visão está relacionada a outra medida adotada no contexto do Decreto-Lei nº 54 de 2018: as escolas especiais foram convertidas em Centros de Recursos para a Inclusão (CRI). Assim, em vez de atender os estudantes com deficiência em suas instalações, os técnicos dessas instituições vão à escola regular para realizar esse trabalho. 

Para David, essa dinâmica é essencial. “Isso passa uma mensagem muito clara de que o lugar da educação é na escola, e não fora dela”, enfatiza.

Na prática, qualquer aluno que precise de ajuda receberá suporte da chamada Equipa Multidisciplinar de Apoio à Educação Inclusiva (Emaei), que atua na escola – não são os profissionais que prestam atendimento individual à criança ou adolescente.  Como enfatiza Luzia, o entendimento é que a “inclusão se faz no coletivo”. 

Esse trabalho coletivo envolve a família, os pais, o estudante, o professor do ensino comum, o professor de educação especial, o diretor, o psicólogo etc. “É na interlocução entre todos esses atores que são decididos os apoios, as adaptações, o que é preciso fazer para aquele aluno aprender, participar e ser incluído” detalha a pesquisadora.

Com base nessa análise são identificadas medidas de suporte à aprendizagem e, se necessário, elaborado um plano educativo individual. As opções metodológicas subjacentes ao presente decreto-lei se assentam no Desenho Universal para a Aprendizagem (DUA) e na abordagem multinível no acesso ao currículo.

Existem três níveis de medidas de suporte – de materiais adaptados e tecnologia assistiva à adaptações curriculares, entre várias opções – previstas nas escolas portuguesas: universais, seletivas e adicionais (confira o detalhamento no “Manual de Apoio à Prática”, produzido pela DGEEC). Elas são mobilizadas ao longo do percurso escolar do estudante em função de suas necessidades. Assim, é esperado que os alunos transitem de um nível para o outro, dependendo das situações que se apresentem – lembrando, mais uma vez, que essas medidas se destinam a qualquer estudante que precise de apoio, ele tendo ou não deficiência. O processo é baseado em monitoramento e avaliação sistemáticas.  

Já o plano educativo individual descreve as medidas de suporte necessárias e como elas serão implementadas, além de abordar as adaptações curriculares, as competências e habilidades a serem desenvolvidas, as estratégias de ensino e a avaliação. O documento inclui, quando necessário, as estratégias de transição entre ciclos e níveis de ensino.  

“Esse processo é de responsabilidade da escola. Não é uma perspectiva médica. A abordagem toda visa entender como podemos modificar as práticas, a organização da escola, a estrutura”, reforça Luzia. Então, muitas vezes, as adaptações significam, por exemplo, mudar uma sala de aula do andar de cima para o andar de baixo, ou dar mais tempo para o estudante fazer uma atividade.   

“Nós detectamos os pontos fortes e as dificuldades dos alunos e buscamos estratégias para ultrapassar essas dificuldades”, diz David. De acordo com ele, 90% dos alunos com dificuldades nas escolas portuguesas são atendidos pelas medidas universais, implementadas pelo conjunto de professores. “O que é que nós, professores, podemos fazer pela criança, antes de chamar os terapeutas? Temos a obrigação de dizer o que é que nós, com a nossa competência, com o que nós sabemos, com os recursos que temos, podemos fazer. E 90% das crianças têm resposta a esse nível.” 

Equipa Multidisciplinar de Apoio à Educação Inclusiva (EMAEI)

Cada escola e agrupamentos possuem uma EMAEI composta obrigatoriamente por um docente indicado pela gestão escolar, um professor de educação especial, três membros do conselho pedagógico e um psicólogo. Além desses, podem participar educadores regentes, profissionais dos CRIs e outros atores que o grupo entenda que possam contribuir a partir da análise de cada caso, como assistentes sociais e profissionais da saúde. 

Entre suas atribuições está, por exemplo, o aconselhamento de docentes na implementação de práticas pedagógicas inclusivas. O coordenador da EMAEI é responsável por garantir a participação e o acompanhamento pelas famílias das medidas de suporte previstas no relatório técnico-pedagógico de cada estudante.

Centros de Recursos para a Inclusão (CRI)

São serviços especializados existentes na comunidade, oferecidos por instituições certificadas pelo Ministério da Educação. Após a publicação do Decreto-Lei nº 54/2018, muitas escolas especiais foram convertidas em CRIs, permitindo que seus profissionais passassem a apoiar os alunos dentro das escolas regulares. 

Fonte: “Manual de Apoio à Prática” e pesquisa “Educação Inclusiva e Formação Continuada de Professores: Aprendizados Nacionais e Internacionais”, do Alana.

Mudanças nas estatísticas educacionais

Após 2018, o censo educacional de Portugal deixou de classificar os estudantes em com e sem deficiência, passando a indicar o percentual de alunos que requerem “medidas seletivas e/ou adicionais de apoio à aprendizagem e à inclusão, que, em 2022, correspondiam a 7,4% do total de estudantes em Portugal. Cabe ressaltar que antes da publicação do RJEI, os dados mostravam que 99% dos estudantes com deficiência estavam matriculados em escolas comuns”, segundo relatório da pesquisa “Educação Inclusiva e a Formação Continuada de Professores: Aprendizados Nacionais e Internacionais”, lançada pelo Alana no último mês

No ano letivo de 2022/2023, Portugal contava com 1,6 milhão de estudantes matriculados no ensino básico: 265 mil na pré-escola, 863,6 mil no ensino básico e 394,9 mil no secundário — níveis que correspondem, respectivamente, à educação infantil e aos ensinos fundamental e médio no Brasil —, segundo o relatório “Educação em Números – Portugal 2024”, produzido pela Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC).   

Pouco mais de três quartos dos estudantes estão em escolas públicas (78,7%), enquanto 21,3% frequentam a rede privada. O sistema educacional português é composto por 8,1 mil estabelecimentos de ensino, organizados em 713 agrupamentos — conjuntos de escolas geograficamente próximas, que oferecem diferentes níveis de ensino e têm uma gestão única – ainda que cada estabelecimento tenha seu próprio quadro de direção e coordenação pedagógica —, visando, entre outros aspectos, favorecer o processo de transição entre os ciclos e otimizar recursos humanos e infraestrutura: como espaços culturais e esportivos, entre outros.

Portugal em números   

  • População: 10,37 milhões de habitantes 
  • IDH: 0,866  
  • Esperança de vida ao nascer: 81,4 anos  
  • Taxa bruta de matrícula para todos os níveis de ensino: 99,45%  
  • Taxa de alfabetização da população com 15 anos ou mais: 96,78%  
  • Investimento em educação em relação ao PIB: 5%**  
  • Despesa anual por estudante de 11.752 dólares **  

 Fonte: IBGE Países, *The World Bank Data e **Education at Glance 2024 

Desafios para a implementação

Os avanços e os desafios na implementação da política de educação inclusiva portuguesa têm sido objeto de estudo e análise de diferentes pesquisadores e organismos internacionais. É o caso do relatório da OCDE: “Resenhas das Políticas Nacionais de Educação: Revisão da Educação Inclusiva em Portugal 2020”.

O documento celebra, por exemplo, a ampliação da escolaridade obrigatória até os 18 anos que ocorreu em 2009, o que garantiu a matrícula de todas as crianças e adolescentes em idade escolar. Destaca também a redução da taxa de abandono, apesar de ainda haver variações significativas entre os territórios portugueses.

Contudo, a publicação chama a atenção para o fato de ainda persistirem “diferenças importantes na aprendizagem dos estudantes e nos resultados de bem-estar entre estudantes desfavorecidos e/ou de meios diversos, estudantes de famílias de baixos rendimentos, estudantes de origem imigrante e estudantes de comunidades ciganas”.

No documento, a equipe da OCDE, responsável pela análise da política educacional inclusiva em Portugal, sugere três grandes recomendações para que o país siga avançando. São elas:

    • Fortalecer a governança, o financiamento e o monitoramento da educação inclusiva;
    • Aprimorar os programas de formação inicial e continuada aos professores e demais profissionais escolares com foco em diversidade, equidade e inclusão;
    • Promover respostas à diversidade dos alunos.

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