Parecer do CNE sobre atendimento a alunos com TEA não tem força legal
Texto só terá validade após homologação do MEC. Para especialistas, proposta contradiz a Política de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, que deve ser fortalecida
O Parecer Orientador nº 50/2023, do Conselho Nacional de Educação (CNE), que propõe indicações sobre o atendimento de estudantes com Transtorno do Espectro do Autismo (TEA), está despertando dúvidas entre professores e gestores escolares. Desde que foi divulgado, em dezembro, o documento está circulando intensamente na internet (principalmente nas redes sociais), causando a impressão de que já tem validade legal. No entanto tal compreensão é equivocada, pois um parecer do CNE somente tem valor legal depois de homologado pelo ministro da Educação — o que ainda não ocorreu.
O regimento interno do CNE estabelece um prazo de 30 dias, contados a partir da publicação das decisões do colegiado no Diário Oficial da União, para que a sociedade possa se manifestar por meio do envio de recursos. Como o Parecer nº 50/2023 foi publicado em 22 de janeiro, o prazo para o envio de manifestações e questionamentos sobre o tema termina em 21 de fevereiro.
Ainda de acordo com o regimento do CNE, após validação dos recursos apresentados nesse período, o processo será analisado por um novo relator. Caso ele considere que os apontamentos têm fundamento e o parecer precise ser modificado, o texto passará por nova votação dos conselheiros.
Após aprovação, as decisões do conselho devem ser enviadas ao Ministério da Educação (MEC) para apreciação do ministro Camilo Santana, que decidirá se o parecer será homologado ou não. Não há um prazo legalmente estabelecido para que essa análise seja feita. O ministério pode, inclusive, devolver o documento em questão para reexame dos conselheiros.
Caráter técnico do parecer é questionado
Apesar da aprovação por unanimidade entre os conselheiros, o parecer orientador tem sido alvo de muitos questionamentos por especialistas, gestores públicos e organizações da sociedade civil. “Esse processo não está totalmente pacificado, havendo diversas discussões sobre o tema”, afirma o advogado Vinícius Fidelis, coordenador adjunto voluntário do núcleo paulista da Associação Brasileira para a Ação por Direitos das Pessoas Autistas (Abraça) e pessoa com TEA.
Um ponto polêmico, menciona Fidelis, é o fato de a interpretação da legislação educacional e daquela para as pessoas com deficiência adotada no parecer ser passível de questionamento. “A narrativa do parecer se assenta na legislação, são muitas as referências às leis, o que dá um ar de embasamento e legitimidade ao documento.” Porém o advogado questiona: “A interpretação da legislação do documento é pertinente?”.
Karolyne Ferreira, da área de Advocacy do Instituto Rodrigo Mendes (IRM), tem um entendimento parecido. “A interpretação dada ao arcabouço legal apresentado no parecer dá a entender que o conteúdo total do documento está alinhado à educação inclusiva, mas o que observamos é a transferência de práticas reconhecidamente da área da saúde para a educação, algo que vai na contramão do paradigma da inclusão”, analisa.
Há também vários problemas no texto, segundo Deigles Amaro, especialista em gestão educacional do IRM. Ela analisou o parecer e aponta ao menos dois erros relacionados à Lei Brasileira de Inclusão (LBI), o que fragiliza ainda mais o documento: o parecer cita o inciso XXI do artigo 28 da LBI, que não existe, e afirma que essa lei indica o Plano Educacional Individualizado (PEI) como estratégia, quando na realidade ela traz o Plano do Atendimento Educacional Especializado (PAEE).
Reações à proposta
No último mês, ocorreram diferentes manifestações contrárias à decisão do CNE. Um exemplo desse movimento foi a aprovação de uma moção da Coalizão Brasileira pela Educação Inclusiva contra o parecer durante a Conferência Nacional de Educação (Conae), realizada em Brasília (DF) no final de janeiro.
A moção chama a atenção para o fato de o parecer ter sido redigido sem ampla consulta à sociedade civil organizada, às pessoas com deficiência e seus familiares e aos profissionais da educação. Outro ponto é que o documento caminha na direção contrária da inclusão plena ao legitimar a presença de profissionais da saúde e de outras áreas que não da educação na escola e na sala de aula.
“Quando a Conae, que é uma conferência com participação majoritariamente de profissionais da educação, posiciona-se contrariamente ao parecer, isso indica que esse pedido não vem da área”, analisa Mariana Rosa, ativista e fundadora do Instituto Cáue, referindo-se ao fato de o CNE afirmar que o Parecer nº 50 foi elaborado a partir de várias demandas de educadores e familiares de estudantes com TEA.
Deigles concorda com a análise: “O próprio texto do Parecer não cita a participação de pessoas com TEA e suas famílias na elaboração do relatório técnico”. Segundo o documento, “as orientações relativas ao atendimento dos estudantes com TEA foram resultado de ampla construção coletivas dos pesquisadores, cientistas e professores, que estudam a temática, produzem artigos, avaliam pesquisas e vivenciam experiências desses estudantes” (pág. 10).
Além da Conae, o Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença (Leped) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) se manifestou contra o parecer.
O documento também foi tema de reunião da Comissão Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (CNEEPEI), que não foi consultada durante o processo de elaboração do texto. No encontro, a secretária de Educação de Goiás, Fátima Gavioli, questionou o fato de o documento ter sido elaborado sem uma escuta de gestores estaduais e municipais, que são os atores responsáveis pela implementação das políticas educacionais e deliberações do CNE.
Crítica à concepção clínica na educação
Uma das principais críticas ao parecer é o fato de o documento indicar, em vários trechos, a transferência para a educação de procedimentos e estratégias reconhecidamente da área da saúde. Como detalha Karolyne, essa ideia aparece, por exemplo, no argumento de que as práticas de ensino deveriam levar em conta a Prática Baseada em Evidência (PBE) — ou seja, aquelas cuja eficácia é comprovada por estudos científicos.
“A apresentação da PBE como possibilidade no processo de ensino e aprendizagem é bastante preocupante. O que, afinal, será considerado uma PBE? A quem caberá o esforço investigativo constante para propor a melhor PBE para um indivíduo?”, questiona Karolyne. “A transferência de práticas da área da saúde para a educação não dialoga com o paradigma da inclusão. Não é papel da escola reproduzir terapias clínicas em sua dependência ou permitir que profissionais externos o façam.”
De acordo com o parecer, são consideradas práticas cientificamente validadas aquelas resultantes de pesquisas realizadas sobretudo no campo da saúde e da psicologia. Nesse sentido, o documento destaca que esses resultados raramente são transpostos para o ambiente escolar, dando a entender que esse seria o fator que dificulta (e por vezes inviabiliza) o acesso, a permanência, a participação e o aprendizado dos estudantes com TEA.
Sobre os estudos citados no parecer, Deigles lembra ainda que o próprio texto, após listar 28 itens de PBEs, faz a ressalva de que o referencial teórico utilizado não considera a realidade local, pois são indicadas, essencialmente, pesquisas produzidas fora do Brasil. E que, “portanto, diferenças culturais e estruturais precisam ser levadas em consideração ao transpor para o nosso país”.
Outro aspecto que chama a atenção de Mariana Rosa é o texto sugerir, de forma implícita, uma formação para os acompanhantes dos estudantes pautada pela Análise do Comportamento Aplicada (Applied Behavior Analysis ou ABA, em inglês), uma linha de tratamento para pessoas com TEA difundida no campo da saúde. Ela avalia que um dos fatores que explicam a adesão das famílias à ABA deve-se à falta de investimento efetivo, por muitos anos, para implementar a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI), criada em 2008. Essa falta resultou no grande número de escolas sem, por exemplo, sala de recursos e outras estratégias para eliminar barreiras e efetivar a inclusão. Em novembro, o governo federal anunciou um plano de ações para fortalecer essa política até 2026.
Para Mariana, “muitas famílias passam a enxergar nessa proposta uma solução mágica, que individualiza a busca por caminhos para promover a socialização e a aprendizagem de cada estudante. Nessa perspectiva, a escola deixa de pensar coletivamente, aspecto essencial para a inclusão”.
Deigles complementa o raciocínio: “Adotar metodologias específicas como caminhos de orientação legal [como faz o parecer] não é coerente com os princípios de diversidade dos contextos, a singularidade dos estudantes e os multimeios de ensinar e aprender”.
A impressão de que o parecer coloca em primeiro plano os profissionais de saúde também aparece quando o texto prevê o envolvimento de agentes terapêuticos — psiquiatra, terapeuta ocupacional, fonoaudiólogo, neurologista, psicólogo, entre outros — no Atendimento Educacional Especializado (AEE), bem como na elaboração do Plano Educacional Individualizado (PEI) e do Plano de Atendimento Educacional Especializado (PAEE).
“Essa visão remete a períodos em que a educação inclusiva não era prioridade no Brasil e retira a centralidade do papel do professor como docente. Isso viola a Convenção Internacional sobre o Direito das Pessoas com Deficiência e seus comentários”, destaca o advogado Fidelis.
“Os profissionais da educação, que vivem o cotidiano da escola e estabelecem a relação com os estudantes e suas famílias, são os protagonistas na compreensão das necessidades educacionais e na busca por caminhos para a remoção de barreiras para a aprendizagem”, explica Deigles. Por isso, são eles que devem liderar o AEE e a elaboração de PEI, PAEE e qualquer outra estratégia.
Ressaltar a necessidade de uma política na qual os educadores são protagonistas não significa excluir profissionais de outras áreas. “As pessoas com deficiência têm direito ao acesso a serviços de saúde e assistência social”, afirma Deigles. Ela complementa: “A intersetorialidade e a ampliação da compreensão das necessidades dos estudantes a partir do diálogo com profissionais de outros setores, como da saúde, são bem-vindas, mas não podem determinar os caminhos das práticas educacionais realizadas no interior da escola”.
A abordagem prevista no parecer, conclui Karolyne, “remete ao modelo médico de deficiência, ou seja, ao entendimento de que a deficiência é intrínseca e definidora da pessoa. Por essa perspectiva, no caso da escola, o ensino e a aprendizagem deveriam ser organizados a partir das características da deficiência, as quais são vistas como parâmetros para estabelecer o que o estudante é capaz de aprender”.
PNEEPEI e LBI reafirmam conceito social de deficiência
A visão médica da deficiência foi superada pelo modelo social. Essa mudança de paradigma norteia a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas (ONU) de 2006, que fundamenta todo o aparato legal sobre deficiência e educação inclusiva no Brasil, inclusive a LBI e a PNEEPEI.
“O parecer se afasta de elementos essenciais da inclusão: a valorização das diferenças, a conscientização para a eliminação de barreiras atitudinais e comportamentos capacitistas, a discussão de estratégias pedagógicas diversificadas, a qualidade da formação inicial e continuada de professores, entre outros”, destaca Karolyne.
A legislação atual indica que, no modelo social, a ênfase não está na pessoa, em suas características, e sim nas barreiras de diferentes naturezas que existem na sociedade — físicas, atitudinais, de comunicação, tecnológicas etc. — e que criam impedimentos ou dificuldades para que ela se desenvolva, expresse seus potenciais, viva em sociedade e exerça a cidadania.
Então, nesse paradigma, a inclusão escolar se efetiva na medida em que o professor de AEE identifica e atua, em conjunto com o professor de sala, pela eliminação de barreiras que prejudicam a aprendizagem, a participação e a socialização do estudante.
Ao defender o fortalecimento e a implementação da PNEEPEI, Karolyne recupera aspectos essenciais que não foram considerados no parecer, como “o reconhecimento da importância de ambientes heterogêneos que promovam a aprendizagem de todos os alunos” a partir de “uma atuação pedagógica voltada para alterar a situação de exclusão”. Esses pontos demonstram como a abordagem da Política é de cunho pedagógico e de valorização da diversidade humana. Afinal, o convívio com diversas perspectivas e características humanas é imprescindível para formar indivíduos empáticos e habilidosos na convivência em uma sociedade democrática.
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Este texto foi atualizado em 16/02/2024, às 21h50, para corrigir uma informação: a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência e Idosos (Ampid) não se manifestou contrária ao Parecer nº 50/2023, do CNE.
2 Comentários
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Segundo um curso online de PEI ministrado gratuitamente por um um terapeuta e escritor, que concorda com o parecer 50, podemos compreender que todos esses questionamentos sobre o parecer 50, estão visivelmente presente no PEI . Ele é norteado pela deficiência do aluno e nao por suas potencialidades apesar de ter um discurso incusivo, pedagogicamente e socialmente, tem característica excludente.
Enquanto pesquisadora e educadora especialista no AEE para alunos com Transtorno do Espectro Autista (TEA) desde 2013, identifico que, se as equipes de profissionais trabalharem de forma integrada em prol do atendimento de cada pessoa com autismo, poderão ser mais eficientes e assertivas em seus diagnósticos e atendimentos. Isso contribuirá para a melhoria da qualidade de vida, além de gerar mais conhecimentos e acolhimento na inserção clínica, familiar, social e escolar. Relato que, durante esses anos, apenas em uma das minhas observações mais relevantes sobre mutismo seletivo de um aluno, o médico solicitou meu relatório pedagógico.