Capoeira resgata autoestima de alunos excluídos da educação física

O recreio na Escola Municipal Hilberto Silva, em Fortaleza (CE) é a hora mais aguardada pelos estudantes. Mais do que o momento para brincar e comer, o período de intervalo entre as aulas é destinado a uma prática que funciona como ferramenta para fisgar a concentração e diminuir a correria dos alunos pelo amplo espaço da unidade. Assim que o sinal bate, com pandeiros e berimbaus em mãos, as crianças se unem e dão início a uma roda de capoeira.

O vídeo está disponível com recursos de acessibilidade de Libras e audiodescrição.

Há anos, a capoeira durante o recreio tem sido uma tradição da escola, que está situada no bairro Nossa Senhora das Graças. A comunidade, conhecida popularmente como Pirambu, é formada por pessoas de média e baixa renda e enfrenta problemas ligados à criminalidade e à falta de saneamento básico. Na unidade são atendidos cerca de mil estudantes do ensino fundamental I, nos turnos matutino e vespertino, e 200 alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA), no período noturno.

Apesar do sucesso, nossas primeiras rodas de capoeira não eram praticadas por todos. Do total de crianças, 23 apresentavam algum tipo de deficiência e recebiam atendimento educacional especializado (AEE). A maior parte delas, porém, não era incentivada a participar de atividades físicas em geral, seja nas aulas de educação física – que eram restritas a 13 de nossas 20 turmas devido à uma política da prefeitura – ou na brincadeira durante o intervalo. Muitas tinham vergonha ou sentiam que não eram capazes de fazer os movimentos.

Esse cenário começou a mudar no início de 2015, quando nossa escola foi convidada para participar do Portas abertas para a inclusão. No curso oferecido pelo Instituto Rodrigo Mendes, tivemos a oportunidade de realizar um projeto de educação física na perspectiva da educação inclusiva. A formação nos fez repensar nossa realidade. A partir disso, passamos a ter uma sensibilidade maior para sempre planejar atividades que pudessem ser realizadas, em conjunto, pelos estudantes com e sem deficiência. E assim, desenvolvemos um projeto de capoeira inclusiva.

 

Aproximação entre AEE e sala regular

Participaram da formação a professora do AEE, Norma Suely, o docente de educação física, Luciano Hebert Silva e eu, Venê Filho, coordenador pedagógico da Hilberto Silva. O grupo se reuniu algumas vezes para discutir quais eram as barreiras e os facilitadores presentes em nossa comunidade escolar. Com esse exercício, pudemos mapear os vários elementos que dificultavam ou facilitavam a construção de uma prática inclusiva e assim, dar início à implementação de nosso projeto.

Logo de início, vimos que nosso principal obstáculo era a falta de interação entre os educadores da sala comum e do atendimento educacional especializado. O professor de educação física, por exemplo, nunca havia mantido uma relação sistematizada com a docente Norma, uma vez que os horários de planejamento de ambos eram distintos. Conforme passamos a perceber durante a formação, a interação entre os profissionais das salas regular e de recursos multifuncionais é essencial.

Nossa primeira ação, então, foi agendar encontros semanais para discutir e planejar as atividades. A coordenação reestruturou o calendário escolar, permitindo que as agendas coincidissem. Com a criação de um espaço de diálogo entre esses docentes e a gestão, ampliamos o conhecimento sobre os alunos e suas especificidades.

 

Capoeira inclusiva

A capoeira é uma excelente ferramenta para a educação física, pois pode ser contemplada em aspectos culturais, esportivos, rítmicos, cênicos, lúdicos, entre outros. Porém, antes de iniciarmos o curso de formação, a prática não alcançava a todos. Um dos estudantes que ficava afastado era o Lucas. O aluno tem deficiência física e muita dificuldade para caminhar. Ele ficava de lado, apenas observando os colegas participarem do jogo.

Criamos, então, uma maneira de envolver essas crianças. Primeiro, introduzimos a educadora do AEE na roda, para que os estudantes que não eram público-alvo da educação especial passassem a conhecê-la. Já o professor de educação física passou a executar movimentos mais simples, para que todos que não tivessem conhecimento técnico pudessem participar. Os instrumentos começaram a ser passados de mão em mão: quem não quisesse se movimentar, poderia tocar. Aos poucos, as crianças perceberam que eram capazes de participar e iam se aproximando do círculo.

O caso do Lucas foi marcante. A partir do momento em que a coordenação e os educadores passaram a ter uma visão mais humana para a diversidade, passamos a instigar e incentivar os estudantes a explorar suas potencialidades. A mudança de atitude alterou o antigo cenário e Lucas percebeu que poderia fazer as mesmas atividades que seus colegas. A melhora em sua autoestima foi visível não só durante o intervalo, mas também durante as aulas.

 

Resultados e continuidade da iniciativa

Uma simples alteração na metodologia dos planejamentos semanais para facilitar a interação entre os professores fez uma grande diferença nas aulas de educação física e na rotina diária da escola. Tivemos um significativo resgate na autoestima dos alunos e os comportamentos agressivos durante o recreio diminuíram.

Com o início do ano letivo seguinte, o docente Luciano deixou a escola. Porém, o projeto continuou, dessa vez pelas mãos da professora do AEE e dos próprios alunos, que agora também são responsáveis por conduzir a roda de capoeira nos intervalos. Agora, pretendemos estender a interação entre atendimento educacional especializado e demais educadores, para que outras atividades inclusivas possam ser desenvolvidas nas demais disciplinas.

Projeto participante do curso Portas Abertas para a inclusão 2015. Esta experiência faz parte da Coletânea de práticas 2015.

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