“A luta atual das pessoas com deficiência é construir a educação verdadeiramente inclusiva”

Para Martinha Clarete Dutra, representante do movimento de luta das pessoas com deficiência, a sociedade precisa avançar na garantia da aprendizagem

Martinha Clarete Dutra é um dos principais nomes do movimento de luta das pessoas com deficiência, tendo integrado o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Também foi diretora de Políticas de Educação Especial da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI) do Ministério da Educação entre os anos de 2009 e 2016. Atualmente é pesquisadora na área de educação inclusiva.

 

Martinha em pé discursa segurando microfone. Fim da descrição.
Martinha em palestra em São Paulo. Foto: Amana Salles

Para mim, uma educação transcriadora, inovadora e disruptiva é uma educação inclusiva, porque educação inclusiva não quer dizer só acolher a pessoa com deficiência, quer dizer acolher a todas as pessoas e valorizar os talentos, as capacidades de todas elas

Martinha percebe os avanços nos direitos das pessoas com deficiência ao longo dos anos de luta na medida em que a sociedade vem repudiando estigmas e discriminação e, sobretudo, em que apresenta mecanismos de prevenção e de enfrentamento das violências.

Contudo, entende que a sociedade passa por um momento de retirada de direitos no qual é preciso resistir. “Hoje temos que reunir forças e lutar contra algo que parecia já ter sido superado, mas que retorna”, avalia.

Dia Nacional de Luta das Pessoas com Deficiência

O 21 de setembro foi oficializado como Dia Nacional de Luta das Pessoas com Deficiência em 2005, mas é comemorado desde 1982. A data foi escolhida pela proximidade ao início da primavera, o que simboliza o sentimento de renovação das reivindicações de cidadania, inclusão e participação plena na sociedade.

Confira a entrevista que o DIVERSA realizou com Martinha. Ela fala dos avanços nos direitos das pessoas com deficiência, dos desafios atuais, da importância da educação inclusiva e da necessidade de a sociedade resistir ao momento de retirada de direitos.


DIVERSA – Você é uma importante representante da luta das pessoas com deficiência. Como você iniciou e percorreu essa trajetória?

Martinha – Eu iniciei essa trajetória muito cedo, ainda na adolescência, participando de grupos da comunidade e entendendo o valor e a necessidade do trabalho coletivo calcado em princípios de Direitos Humanos. Na medida em que eu me desenvolvi, eu me engajei em grupos, desde grupos de mulheres, movimento estudantil, secundarista, universitário, e movimentos de Direitos Humanos como um todo. E depois acabei assumindo a organização do Conselho Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência em Londrina (PR). Por consequência disso, o Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Paraná e depois o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Conade).

Eu me construí profissionalmente sempre conciliando esse trabalho de militância, o trabalho profissional e o acadêmico, porque eu também me dedico à pesquisa. A educação inclusiva se tornou uma preocupação científica para mim. Então, passei a estudar esse tema como a professora que sou, e fiz a especialização, mestrado e doutorado, sempre procurando aprofundar esses temas.

Esse trabalho de pesquisa foi um fundamento muito importante para a minha militância, porque eu passei também a articular espaços na gestão escolar, na gestão do Ministério da Educação, na gestão da Secretaria Municipal da Educação, produzindo marcos legais, pedagógicos, políticos, que pudessem fazer avançar as nossas lutas.

Quais foram os principais desafios ao longo dos anos de luta? E as principais conquistas?

Eu percebo os avanços e as conquistas na medida em que nós pautamos o tema da construção de uma sociedade para todas as pessoas; em que a gente vem repudiando estigmas e discriminação; e, sobretudo, na medida em que apresentamos mecanismos de prevenção e de enfrentamento das violências. Porque toda vez que uma pessoa tem os seus direitos cerceados, nós temos uma situação de violência.

Mas eu percebo também o quanto ainda é necessário fazer. A civilização vive em ondas, movimentos que fazem a sociedade avançar e retroceder. Temos que ter uma retaguarda forte para que, nesses momentos de recuo, possamos visualizar caminhos alternativos e, nos momentos de avanços, dar passos largos para acelerar esse processo.

Desde o início da comemoração do Dia Nacional de Luta das Pessoas com Deficiência, em 1982, o que evoluímos enquanto sociedade para proporcionar participação das pessoas com deficiência em todas as esferas sociais e políticas?

Eu não tenho dúvida de que uma grande conquista é o acesso das pessoas com deficiência a uma educação inclusiva. Em toda a história educacional do nosso país, nunca alcançamos um indicador tão positivo de pessoas com deficiência acessando a educação básica e superior.

Esse indicador se repete no mundo do trabalho, no universo cultural do nosso país. Podemos identificar esse crescimento do conceito de recursos de acessibilidade na produção do audiovisual. Audiodescrição é um conceito que nós elaboramos. A língua brasileira de sinais (Libras) está em franco processo de difusão.

Então, vejo que consolidamos um marco normativo importante no Brasil, à custa de muito debate, muita polêmica, mas esse é o processo. Podemos hoje olhar para as barreiras, qualificá-las e criar estratégias para eliminá-las, sejam barreiras físicas, arquitetônicas, comunicacionais, atitudinais, tecnológicas etc.

Essas são conquistas que nós não vamos abrir mão. Essa construção foi feita socialmente, não é mérito de uma só pessoa, de uma só organização. Há um envolvimento de toda a sociedade.

Qual é a luta atual das pessoas com deficiência? E como a data ainda se faz muito importante nessa luta?

Construir a educação inclusiva verdadeiramente, com uma qualidade social, na garantia da aprendizagem. É a gente não perder a concepção de uma sociedade inclusiva, não recuarmos para aquele entendimento de que a condição de deficiência é sinônimo de caridade e que as pessoas com deficiência precisam de ajuda, de favor. Hoje, esse é um grande risco. Não podemos naturalizar a ideia de inferioridade, incapacidade ou invalidez de uma pessoa com deficiência pela sua própria condição.

Então, para mim, esse é o desafio. Não permitirmos um abandono da concepção social de deficiência, que parte do entendimento de que o problema não está na pessoa, mas sim na sociedade cuja estrutura é hegemônica, padronizante. Pessoas com deficiência precisam de políticas públicas. Esse é o desafio fundamental dos nossos dias.

Eu quero meus direitos todos reconhecidos e efetivados, como qualquer outro cidadão e cidadã do país.

E um desses direitos fundamentais é o direito a dignidade, a não-discriminação, o direito de ser, de ter autonomia, segurança, independência e recursos de acessibilidade nos diferentes setores públicos e particulares dentro dos serviços disponíveis na sociedade. Então eu penso que hoje nós estamos num momento de forte enfrentamento por essa razão.

Hoje, no que precisamos avançar em termos de inclusão escolar e de direito à aprendizagem?

Temos que garantir a política pública de promoção à inclusão escolar. Se depender do governo federal, isso não vai acontecer, porque todo o orçamento que existia no Ministério da Educação para o fortalecimento de uma educação inclusiva não existe mais, inclusive, a secretaria não existe mais. E então cabe a cada município e estado, aos sistemas municipais e estaduais de educação e aos sistemas particulares implementarem essas políticas e assegurarem esses direitos das pessoas com deficiência.

Estamos em um momento de resistência, de existência, para não termos um prejuízo histórico, e que a gente consiga na luta, no movimento coletivo, avançar no sistema de garantias de direitos.

Como nós, enquanto sociedade civil, podemos contribuir com isso?

Temos que reagir, envolver o judiciário, envolver os órgãos de defesa de direitos, por exemplo, o Ministério Público, os Conselhos Municipais e Estaduais. A sociedade tem mecanismos que são parte do sistema de sustentação democrática. Então, é momento de fortalecer esses espaços de ação coletiva. O Estado, no sistema democrático brasileiro, é forte.

Qual mensagem você deixa para a sociedade de uma forma geral no Dia de Luta da Pessoa com Deficiência? 

Sociedade humanizada é uma sociedade que reconhece e valoriza a diferença. Eu não acredito que a luta das pessoas com deficiência aconteça fora desse contexto mais amplo. Então, por isso, temos que perceber as populações vulneráveis: as mulheres, crianças em situação de pobreza, os LGBTQ+, as populações indígenas, afro-brasileiras etc. Como essas populações se percebem no contexto social brasileiro?

Todas essas pessoas podem ou não ser uma pessoa com deficiência. É aí que percebemos que a discussão é muito mais profunda. Isso para mim é muito preocupante, porque hoje a dificuldade é, antes de mais nada, de dialogar. Você vê que isso é algo tão essencial para o ser humano, tão caracterizador de humanidade. E o processo dialógico é feito com tanta dificuldade ou, às vezes, é totalmente interrompido.

Hoje temos que reunir forças e lutar contra algo que parecia já ter sido superado, mas que retorna. Mas eu acredito que gente não tem o direito de se desesperançar. A gente precisa fazer desse momento um nutriente novo, capaz de nos revitalizar.

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