Panorama da educação inclusiva na Inglaterra

Nas últimas décadas, muitos países têm passado por mudanças significativas na compreensão da educação inclusiva nos níveis das leis e normas nacionais, dos sistemas de ensino e das escolas e comunidades. Na Inglaterra, o Relatório Warnock, de 1978, representa um marco importante nesse sentido, por abrir caminhos para uma maior participação das pessoas com deficiência no ensino regular inglês. Desde então, o sistema de ensino daquele país vem passando por um intenso processo de transformação, que culminou nas reformas promovidas em 2014 em importantes documentos de educação como o Código de Práticas para a Identificação e a Avaliação de Necessidades Educativas Especiais e o Children and Families Act.

Para entender a atual situação da educação inclusiva na Inglaterra é interessante recorrer a uma perspectiva histórica. Assim como no Brasil, essa trajetória não é linear. Não se trata de uma sequência lógica, sistemática e progressiva de mudanças. Apesar dos inegáveis e expressivos avanços, esse caminho tem sido marcado por controvérsias, ambiguidades, contradições e, muitas vezes, retrocessos.

Durante grande parte do século XX, o modelo dos sistemas de ensino dominante em todo o mundo era dividido em duas categorias: regular e especial. Como no Brasil, as concepções que norteavam a educação especial na Inglaterra enfatizavam o modelo médico, caracterizado pela descontextualização da deficiência. Na década de 1960, surgiu no país o movimento que culminou no estabelecimento do modelo social, no qual a deficiência passa a ser entendida como uma variável contextual. Os registros pioneiros dessa nova base conceitual são atribuídos à União das Pessoas com Deficiência contra a Segregação, uma das primeiras organizações de pessoas com deficiência com objetivos prioritariamente políticos e não assistenciais. A entidade foi criada por Paul Hunt, no início dos anos 1970, que publicou uma carta no jornal The Guardian convidando pessoas com deficiência para combater a segregação de forma coletiva e organizada.

Em 1978, a Inglaterra publica o Relatório Warnock. O documento, resultado do trabalho de um comitê governamental, teve como objetivo analisar e fazer recomendações quanto ao atendimento às pessoas com deficiência no contexto educacional. O relatório propunha que a educação especial fosse vista como adicional e suplementar ao invés de separada e alternativa ao ensino regular, devendo ocorrer em salas de aula comuns, com apoio quando necessário. Propunha-se, também, um sistema para identificação e avaliação das necessidades educativas especiais. Apesar de representar um avanço ao colocar as necessidades especiais como um assunto relacionado à educação em geral, o relatório era baseado no conceito de integração.

O Education Act, de 1993, estabeleceu um conjunto de práticas com o objetivo de nortear as ações e iniciativas das autoridades locais de educação e demais órgãos do governo. Após uma ampla consulta pública, o Código de Práticas para a Identificação e a Avaliação de Necessidades Educativas Especiais foi aprovado pelo Parlamento. A partir de setembro de 1994, todos serviços envolvidos no atendimento a pessoas com deficiência aderiram ao documento.

Influenciado pela Declaração de Salamanca, o Education Act de 1996 enfatizou o compromisso do governo com a inclusão de pessoas com deficiência na modalidade regular. A lei ampliou o envolvimento de pais e de crianças e jovens com deficiência na tomada de decisões sobre o processo de escolaridade. O Código de Práticas foi revisado, reafirmando a inclusão como exigência legal. As pessoas com deficiência passaram a ter o direito de frequentar a escola mais próxima de sua residência e não somente as unidades indicadas pelas autoridades locais de educação, como acontecia no passado.

Contradições

Na década de 1990 e início dos anos 2000, outros documentos e leis seguiram essas tendências, destacando o compromisso com a educação inclusiva. No entanto, paralelamente, a criação de um currículo nacional em 1988, que instituiu padrões de testes de avaliação e tabelas de desempenho, deu início a um período de tensões entre os princípios inclusivos e a excelência acadêmica. A avaliação altamente padronizada fomentou a competição entre escolas e procedimentos rigorosos de inspeção passaram a ameaçar escolas com baixo desempenho. Segundo Barbara Cole, pesquisadora do Instituto de Educação da Universidade de Londres, a preocupação dos governos com o aumento dos padrões de educação criou um cenário potencialmente hostil ao desenvolvimento de culturas inclusivas de educação. Jenny Corbett, especialista em educação inclusiva da mesma universidade, reitera a crítica, afirmando:

A atual ênfase nas escolas na Inglaterra e no País de Gales está no desempenho acadêmico, elevados padrões de comportamento e consistência da abordagem curricular. Há um reconhecimento generalizado de que estamos operando em um mercado educacional, em que as escolas competem por clientes. É um desafio particular para uma escola inclusiva demonstrar que é também uma escola eficaz com base nos atuais critérios do governo.

As contradições não param por aí. Em setembro de 2014, versões reformadas do Código de Práticas e do Children and Families Act entraram em vigor na Inglaterra e no País de Gales. A atual legislação garante o direito ao ensino regular desde que não prejudique a “educação eficiente” de outros estudantes. As orientações fomentam o agrupamento de alunos por “capacidade”. A noção de “escolha parental” continua dando margem à manutenção da educação especial como um sistema paralelo ao ensino regular. Além disso, os documentos apresentam definições que sugerem, ainda que implicitamente, a lógica do modelo médico da deficiência.

No ensaio “Transformação ou oportunidade perdida?”, o pesquisador Nick Peacey aponta incompatibilidades aos princípios inclusivos nessas reformas e questiona o compromisso do governo britânico com a Convenção da ONU sobre Direitos das Pessoas com Deficiência, ratificada em 2009. Segundo ele, a competição e a ênfase em padrões educacionais foram elevadas a tal ponto que sufocam o progresso da educação inclusiva na Inglaterra e ameaçam o bem-estar de crianças e jovens.

Há críticas, também, quanto à clareza das orientações nas novas versões dos documentos. O The Guardian publicou uma matéria afirmando que “as leis destinadas a ‘simplificar’ o apoio a crianças com necessidades educativas especiais têm feito as coisas caóticas, e em alguns casos catastróficas”.

Há, indubitavelmente, aspectos positivos nos documentos em questão, principalmente no encaminhamento de questões práticas. Mas não há, também, como negar as incongruências em relação aos pressupostos da inclusão.

No cenário atual, as controvérsias prevalecem. Enquanto o processo de reformas está em andamento, grupos contestam aspectos específicos e sugerem revisões. Contexto que remete ao pensamento de Len Barton, da Universidade de Londres, que afirma que a busca pela consolidação da educação inclusiva é inerentemente complexa e controversa, por exigir o enfrentamento de barreiras estruturais profundas, incluindo a base social das noções de “sucesso”, “fracasso” e “capacidade” ainda presentes no ambiente escolar.

 

Raquel Paganelli é mestre em educação inclusiva pelo Instituto de Educação da University College of London e atua nas áreas de consultoria e formação de professores..

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