Educação integral e inclusiva: escolas e cidades para todas e todos

A educação integral parte de um pressuposto fundamental: todas as pessoas são capazes de aprender, em diferentes lugares, com diferentes pessoas e ao longo de toda a vida. Trata-se de uma concepção que compreende que educar é garantir o desenvolvimento de todas e todos, em todas suas dimensões – intelectual, física, afetiva, social e simbólica. Essa visão se contrapõe à ideia clássica de que a educação se restringe ao processo centrado na escola e voltado apenas para o conhecimento acadêmico.

O espaço escolar tradicionalmente concebido não é suficiente para garantir o conjunto de aprendizagens necessárias para que crianças, adolescentes, jovens e adultos enfrentem os desafios da sociedade contemporânea. Essas aquisições supõem novos arranjos consonantes com o desafio de educar no século XXI. Alinhada a essa demanda, a educação integral promove processos educativos que entrelaçam a experiência escolar à vida nas comunidades e nas cidades e se convertem em uma responsabilidade coletiva.

Além disso, reconhece que os estudantes devem estar no centro do processo de ensino-aprendizagem e que cada um tem ritmos e estilos distintos. As singularidades são, justamente, a matéria-prima do educador e devem, portanto, constituir o pilar do processo educativo, do planejamento à avaliação. É exatamente no valor e na centralidade dada a cada aluno que a educação integral e a educação inclusiva se encontram e se fundem.

A escola inclusiva e integral

Ao contrário do que muitos pensam, uma escola que matricula pessoas com deficiência não é necessariamente inclusiva. Também não basta que elas estejam matriculadas sem distorção idade-série e que estejam aprendendo o que se espera, considerando seu estágio de desenvolvimento. A escola inclusiva vai além daquela que acolhe ou mesmo que ensina, embora esses sejam aspectos importantes dela.

O que de fato define uma escola inclusiva é seu compromisso com a promoção de uma cultura de inclusão. Trata-se de um esforço intencional e permanente de promover espaços físicos e simbólicos onde todos possam se expressar livremente e onde as diferenças sejam trabalhadas e valorizadas como expressão da diversidade humana. Nesse sentido, uma escola onde não existe bullying ou choques relacionados aos estudantes com características distintas da maioria não é, a princípio, inclusiva, pois pode ser resultado de um interdito que faz com que os problemas apenas não sejam evidentes.

A escola inclusiva e integral reconhece que o conflito é parte inerente à convivência. Por isso, promove espaços de radicalização democrática onde as divergências se afloram e podem, assim, ser trabalhadas para criar um ambiente de aceitação que faça sentido para todos. Dessa forma, o respeito não é resultado de uma norma, mas de uma construção coletiva de um ambiente plural, democrático e solidário.

Muito além das desculpas

Dois casos reais podem nos ajudar a refletir sobre esses pontos. O primeiro foi o de uma aluna negra que foi xingada por uma colega por ter cabelo crespo. Diante do ocorrido, a professora pediu que a estudante que produziu a ofensa pedisse desculpas. A menina negra não aceitou essa solução e defendeu que era necessário aprofundar o conflito, trazendo para a mesa todos os elementos que nos fazem racistas e que mantêm nossa sociedade tão desigual. O acolhimento da proposta deu início a um amplo processo educativo onde todos puderam se reconhecer, em alguma medida, reprodutores de preconceitos e discriminações étnico-raciais, de gênero, de orientação sexual e tantas outras.

O episódio rendeu uma imersão do grupo em lugares profundos, os quais não costumamos visitar. Nesse exercício os alunos lançaram um olhar crítico sobre a cidade e compreenderam que o acesso de negros a espaços e oportunidades mais qualificadas era inferior em comparação com brancos. O tema não se esgotou na escola e envolveu outros coletivos e movimentos da cidade para auxiliá-los nessa caminhada. Foi, portanto, fundamental que, para além das desculpas, houvesse naquele grupo um outro olhar de uns sobre os outros.

Os estudantes saíram fortalecidos e unidos e, embora ainda com muitos desafios a serem trabalhados, se sentiram mais conscientes e dispostos a avançar. Essa foi uma resposta de uma escola de educação integral que diante de seus desafios e conflitos opta por enfrentá-los, avançando passo a passo na construção de uma cultura de inclusão.

Nove não são dez

Outro episódio se deu em uma escola regular que conta com mais de uma centena de alunos com deficiência. Em uma das turmas, um garoto chamou para sua festa de aniversário nove dos dez meninos matriculados. Esse fato poderia ter passado sem maiores rumores não fosse o fato de o estudante não convidado ser justamente o que apresentava uma deficiência.

Um texto produzido por uma mãe que soube do ocorrido intitulado “Nove não são dez” chamou a atenção das famílias para reconhecer que a crueldade ocorrida naquele “não convite” significava o dever de ir a fundo na reflexão sobre nossa própria humanidade. Colocar-se no lugar do outro e sentir o peso da exclusão, da solidão, da rejeição era necessário como exercício para que todos fossem capazes de efetivamente construir uma escola inclusiva. Não bastava que eles “aceitassem” e mesmo convivessem bem com aquele colega; era necessário reconhecer nele um par, um outro que precisa de mim para se construir e que me ajuda também nessa criação. Tão sabiamente já dizia Paulo Freire: “ninguém educa ninguém, ninguém se educa sozinho, nos educamos uns aos outros mediatizados pelo mundo”.

A busca por uma sociedade inclusiva é de todos que, por meio de suas atitudes, reduzem ou aumentam as barreiras ao acesso das pessoas com deficiência à cidadania. Quando a educação integral propõe que o processo de aprendizagem considere todos os aspectos do desenvolvimento, faz um chamamento por essa escola que acolhe, ensina, aprende e mais do que qualquer outra coisa, promove a convivência, a solidariedade, a empatia e a colaboração.

 

Natacha Costa é diretora executiva da Associação Cidade Escola Aprendiz desde 2006. Tem sua atuação marcada pelo desenvolvimento de iniciativas de educação, gestão pública, articulação de redes e empreendedorismo social. Criou e é responsável pelo Centro de Referências em Educação Integral. É membro da Comissão Editorial de Educação Integral em Tempo Integral pela Fundação Joaquim Nobuco, do Ministério da Educação (MEC) e da Rede de Inovação e Criatividade na Educação Básica.

Maria Antonia Goulart é membro do Grupo de Trabalho Nacional de Criatividade e Inovação do MEC e bacharel em direito pela Universidade de Brasília (UnB). Tem experiência na área pública como secretária municipal de Nova Iguaçu (RJ) e foi responsável pela concepção e implementação do Programa Intersetorial de Educação Integral “Bairro-Escola” de 2005 a 2010. É coautora do livro “Caminhos da Educação Integral no Brasil” e cofundadora e coordenadora geral do Movimento Down.

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