Equipe de instituto que realiza cursos de formação para educadores elenca os 5 desafios centrais para a efetivação de uma cultura de inclusão na escola
Nas últimas décadas, muitos países passaram por mudanças nas políticas e práticas de educação inclusiva. A aprovação da Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência pela ONU, em 2006, induziu a criação de políticas nacionais para fazer valer os direitos nela estabelecidos. No Brasil, em 2008, foi promulgada a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva e, em 2015, estabelecido o Estatuto da Pessoa com Deficiência, mais conhecido como Lei Brasileira de Inclusão (LBI). Com isso, as matrículas de estudantes com deficiência nas escolas comuns aumentaram vertiginosamente.
Ao longo desse processo, expressivos e inegáveis avanços vão sendo delineados, assim como os desafios a serem superados socialmente para romper com nossa cultura seletiva e homogeneizadora. A escola, como instituição social, tem sido provocada a considerar a diferença como valor e ampliar seu repertório pedagógico para que ninguém fique para trás ou para fora.
Diante desse cenário, não é raro o sentimento de despreparo por parte dos educadores. Assim, as ações de formação continuada e em serviço despontam como espaços de diálogo que potencializam as ações necessárias para efetivar o direito de todos à educação. Por meio dos projetos desenvolvidos pelo Instituto Rodrigo Mendes (IRM), percebemos cinco desafios centrais.
Ninguém para trás
É bastante comum, até mesmo em virtude das exigências legais, que os cursos de graduação em pedagogia e outras licenciaturas abordem questões relacionadas à escolarização de estudantes com deficiência — tais como legislação, serviços e recursos da modalidade da educação especial — trabalhando-as como sinônimo de educação inclusiva. É fato que as pessoas com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação têm sido historicamente privadas da participação nas redes de ensino, principalmente pela associação a um estigma de “anormalidade”.
Porém, a definição de educação inclusiva é mais ampla. Diz respeito a todas as pessoas, sem exceção. Ou seja, todos(as) os(as) estudantes, com ou sem deficiência, têm direito ao acesso (matrícula e presença), à participação em todas as atividades da escola e à aprendizagem, com equiparação de oportunidades para o pleno desenvolvimento de seu potencial. Direito amparado no reconhecimento das diferenças como parte constitutiva da humanidade.
Cada estudante, portanto, aprende de modo singular, o que implica uma profunda reformulação dos princípios e das práticas que regem as ações pedagógicas, de modo que ninguém fique para trás.
Foco no sujeito
Tanto na graduação quanto em cursos de especialização, as deficiências ainda são trabalhadas a partir de padrões fundamentados na perspectiva médica. Como efeito, presenciamos cotidianamente as tentativas de generalização de pessoas com um mesmo quadro diagnóstico e a proposição de estratégias terapêuticas e pedagógicas protocolares, como se houvesse “receitas prontas” ou um saber infalível neste sentido. Porém, como experenciamos cotidianamente, ninguém é igual a ninguém. Assim, pessoas com uma mesma deficiência também são diferentes entre si.
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O ponto de partida para o planejamento de estratégias pedagógicas inclusivas é olhar para o sujeito antes de sua deficiência e compreender quais são suas potencialidades para estabelecer canais de comunicação para que a aprendizagem possa ocorrer. Se, por um lado, é esperado que a proposta curricular seja para todo o grupo, por outro, é imprescindível que as estratégias pedagógicas sejam diversificadas, com base nos interesses, habilidades e necessidades de cada estudante.
Foco nas barreiras
A Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência, ratificada no Brasil como emenda constitucional, estabelece o modelo social de deficiência como balizador das políticas e práticas em nosso país. De acordo com essa perspectiva, a deficiência não está na pessoa, mas na relação entre seus impedimentos físicos, sensoriais, mentais e/ou intelectuais e as barreiras existentes nos diferentes contextos. Esse é o princípio fundamental da educação inclusiva, direito que prevê não somente a garantia à presença de todos na escola, como também o compromisso coletivo para a eliminação dos obstáculos que impedem a plena participação dos estudantes.
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Nesse sentido, muda-se a chave para compreensão: a origem das dificuldades que alunos com deficiência enfrentam na escola não está em suas características, e sim, na relação com as barreiras dentro e fora de sala de aula. O que significa, por exemplo, reconhecer que, se um estudante com deficiência intelectual não está aprendendo, devemos, em primeiro lugar, observar quais são as possíveis barreiras presentes nas estratégias pedagógicas utilizadas. Em geral, elas são decorrentes da expectativa de homogeneidade em relação ao alunado. Assim, um dos maiores desafios da formação docente na perspectiva inclusiva é instigar o educador a, além de conhecer as singularidades dos processos pedagógicos de cada um de seus estudantes para identificar meios de garantir o direito à aprendizagem, buscar reconhecer, juntamente com toda a equipe da escola — e particularmente com o professor do atendimento educacional especializado —, as barreiras à participação para, então, eliminá-las.
Trabalho colaborativo
Muitas vezes o professor se sente isolado em seu fazer pedagógico, o que gera uma sensação de fracasso pessoal quando objetivos não são alcançados. A mediação do processo de ensino e aprendizagem não precisa — nem deve — ser solitária. A capacidade de conversar sobre tentativas, erros e acertos e estabelecer estratégias colaborativamente contribui para o êxito do processo educativo.
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Os espaços de trabalho pedagógico coletivo, que já existem na maioria das redes e escolas, representam espaços potencialmente importantes para que este diálogo ocorra em busca da ampliação de repertório para o planejamento de estratégias pedagógicas diversificadas e inclusivas. Aprender de forma compartilhada, colaborativa, em um ambiente caracterizado pela diferença, onde todos têm a ensinar e aprender, é um exercício fundamental que deve estar no cerne da formação dos professores.
Teoria articulada à prática
A maioria dos cursos de graduação prevê estágios somente no final, o que muitas vezes acarreta na desvinculação entre teoria e prática. Não por acaso, é tão comum encontrar professores recém-formados declarando-se despreparados ao deparar-se com a complexidade do universo que é a sala de aula. Por isso, organizar a formação inicial a partir de uma fundamentação teórica consistente, associada à contínua articulação entre a teoria e a prática é imprescindível. É no contato com a realidade que o professor aprende que todas as teorias estudadas são instrumentos potentes para a leitura dos diferentes contextos e que apostar que cada um dos estudantes pode aprender é a grande virada para investir cotidianamente numa educação inclusiva e equitativa.
Lailla Micas é jornalista pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e está há nove anos no terceiro setor, atuando em gestão de projetos de educação. Faz parte da área de consultoria do Instituto Rodrigo Mendes.
Liliane Garcez é mestre em educação, licenciada em psicologia pela Universidade de São Paulo (USP) e administradora pública pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Atua como gerente de programas no Instituto Rodrigo Mendes.
Raquel Paganelli é mestre em educação inclusiva pelo Instituto de Educação da University College of London, atua nas áreas de consultoria e formação de professores e faz parte da equipe DIVERSA.
Artigo originalmente publicado no blog “Todos Pela Educação” em 06/11/2018, disponível em bit.ly/desafios-formacao-educacao-inclusiva.
© Instituto Rodrigo Mendes. Licença Creative Commons BY-NC-ND 2.5. A cópia, distribuição e transmissão dessa obra são livres, sob as seguintes condições: você deve creditar a obra como de autoria de Lailla Micas, Liliane Garcez e Raquel Paganelli e licenciada pelo Instituto Rodrigo Mendes e DIVERSA.