A importância do calendário de formação docente para fortalecer a educação inclusiva
Esses encontros são oportunidades para refletir sobre as práticas pedagógicas e as ações necessárias para construir uma escola para todos. Nesse processo, é preciso ouvir os professores, considerar as experiências prévias da equipe e envolver os demais funcionários
Viabilizar momentos de reflexão interna sobre as práticas pedagógicas da escola, compartilhamento de dúvidas e aprendizados, escuta do que outros professores estão realizando e debates de referências teóricas que podem aperfeiçoar o fazer docente. Por permitirem tudo isso, os momentos de formação continuada são fundamentais para o processo de ensino e aprendizagem e devem ser planejados com cuidado. Um calendário formativo que faça sentido precisa ser construído de maneira colaborativa, ouvindo os professores e considerando suas demandas. E, para contribuir com o avanço de todos os estudantes, ele necessita ter a educação inclusiva como premissa.
“É função da gestão escolar colocar a discussão acerca da educação inclusiva sempre em pauta, não só por conta da necessidade de atender os alunos com deficiência, mas, sobretudo, pelo compromisso que se deve ter com a construção de uma escola para todos. Essa questão não pode ser abordada como um ‘puxadinho’ ou ‘quando dá tempo’”, afirma Maria da Paz Castro, conhecida como Gunga, professora, formadora, especialista em Educação Inclusiva e consultora pedagógica desta reportagem.
“Uma educação que não se faz inclusiva não tem razão de ser. Se queremos uma sociedade e um mundo acessível, precisamos iniciar o processo formativo também dentro das escolas”, completa Carla Gagno, coordenadora da Educação Especial da rede municipal de Vitória (ES). “Considerar que todas as pessoas são iguais, que todos aprendem da mesma maneira, é um grande equívoco. Portanto, a pauta da educação inclusiva é algo vital.”
As barreiras que impedem o pleno desenvolvimento
Ao planejar formações que visem uma efetiva educação inclusiva, é importante mapear não apenas os alunos que apresentam algum tipo de deficiência e suas demandas específicas, mas principalmente as barreiras — físicas, atitudinais, de comunicação, tecnológicas etc — que os impedem de viver plenamente na escola ou na sociedade.
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2006), da Organização das Nações Unidas (ONU), assinada por mais de 160 países, incluindo o Brasil, aponta que “pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas”.
“Baseados nessa definição, podemos pensar que o que define uma pessoa com deficiência são as barreiras que ela encontra, e não eventuais limitações que ela possa apresentar. Por isso, dizemos que ela está ‘em situação de inclusão’, a depender da barreira que precisa enfrentar”, explica Gunga.
Sendo assim, a inclusão é assegurada a cada pessoa à medida que as barreiras são eliminadas. “Quem faz uso de cadeira de rodas não está em situação de inclusão se estiver em uma sala de aula no térreo, mas se, periodicamente, precisar ir ao terceiro andar, e não houver rampas ou elevador. Há aí uma barreira”, exemplifica a formadora, também parceira do Centro de Educação Terapêutica Lugar de Vida, em São Paulo (SP) e uma das selecionadoras do Prêmio Educador Nota 10. Da mesma forma, uma criança com deficiência intelectual pode estar bem ao brincar no parque da escola, mas requerer estratégias diferentes para compreender certos conceitos ou se alfabetizar durante atividades em sala. “Se não encontrar abertura [do professor], vai enfrentar uma barreira. Então, nesse caso, identificar a barreira é reconhecer o que a está impedindo de se alfabetizar.”
A ideia é que a escola tem de se transformar, não o estudante se adaptar. “Tempos atrás, falávamos na integração desse aluno à escola, ou seja, ele é quem precisava se moldar para se adaptar à instituição de ensino do jeito que ela é. Hoje, quando nos referimos à inclusão, estamos falando em construir uma escola que considere a possibilidade de todos aprenderem lá”, destaca a formadora e especialista.
Por onde começar
O primeiro passo para organizar as formações é ouvir os educadores, sobretudo aqueles que acompanharam ou estão acompanhando os alunos com deficiência. Os professores do Atendimento Educacional Especializado (AEE) devem participar sempre. Cabe à gestão propiciar esses encontros para verificar o que foi feito nos anos anteriores — as situações que foram enfrentadas e as conquistas alcançadas por meio de ações dos educadores. Por exemplo, um aluno que não entrava na sala de aula e passou a ficar mais tempo com a turma ou uma estratégia de alfabetização que funcionou.
É isso o que acontece na Escola Municipal Waldir Garcia, em Manaus (AM). No ano passado, a instituição recebeu dois alunos que desafiaram as estratégias até então utilizadas pela escola e, a partir da escuta dos professores, indicaram a necessidade de obter e compartilhar informações. A gestão promoveu rodas de conversa e palestras, inclusive com a família de uma das crianças e a psicóloga que a atende. “Esses encontros nos ajudaram muito. Foram verdadeiros marcos, sempre um ambiente de muita troca. Porque não são apenas a família e os especialistas que sabem — nós, professores, que vivemos a situação no dia a dia, também sabemos. Então a gente valoriza muito esse diálogo”, conta Danielle Pinto Coelho, professora da sala de recursos multifuncionais.
Além de momentos de troca com as pessoas que convivem com as crianças e jovens com deficiência, a relação professor-aluno pode ser potencialmente formadora. Para Gunga, a formação do professor tem início quando o educador encontra seu estudante e se propõe a conhecê-lo, levantando questões e deixando que ele lhe mostre como ensiná-lo.
Na escola há 17 anos, Danielle conta que, quando começou a atuar, as formações da Secretaria de Educação não davam conta da demanda, então foi buscar conhecimento por conta própria. Ela se especializou em Atendimento Educacional Especializado (AEE) e Neuroeducação, além de fazer cursos livres. Assim, passou a ser referência na escola em relação a esses temas, auxiliando a direção na organização das formações.
“A partir das demandas da escola e do contexto vivido em cada momento, adotamos um cronograma interno de encontros formativos. Antes da pandemia, falamos sobre autismo. Em 2022, no pós-pandemia, recebemos vários alunos com Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH). Apesar de não serem o público-alvo da educação especial, identificamos essa necessidade e fizemos uma grande formação. Temos essa flexibilidade”, conta Danielle.
Definição dos temas e andamento
Na hora de elencar os assuntos que serão trabalhados, a prioridade são as temáticas trazidas pelos professores. Pode-se falar de estratégias didáticas ou relacionadas à participação dos alunos nas atividades propostas, por exemplo, e não só das que deram certo, mas das que não tiveram sucesso também. “O importante é que rendam boas discussões e permitam abordar os impasses vividos pelos professores e as possibilidades de enfrentamento [desses obstáculos]. Isso sem esquecer que uma estratégia que foi eficiente para um estudante não necessariamente será eficaz para outro, ainda que eles tenham o mesmo diagnóstico”, considera Gunga.
O coordenador ou gestor também pode propor assuntos a partir de suas observações e análises. Para isso, ele pode considerar os próprios instrumentos de observação (como anotações), os apontamentos dos professores, as produções dos estudantes e os registros de reuniões de conselhos de classe. Alguns tópicos, como processo de alfabetização, avaliação — como serão analisadas as produções desses alunos e quais critérios serão usados para acompanhar avanços e mapear dificuldades — e alinhamento de expectativas dos professores, pais e gestores não costumam ficar de fora. Uma sugestão é que o levantamento inicial dos temas aconteça na primeira reunião formativa do ano.
Uma vez listados os assuntos, é hora de escolher quem serão os formadores. Os professores que estão no dia a dia com essas crianças precisam ter protagonismo e ter suas experiências valorizadas, mas também podem ser convidados especialistas, sejam de universidades ou da secretaria de Educação. Eles não devem se restringir somente àqueles que conhecem as deficiências, mas incluir os que podem falar de princípios, de valores e da importância de se construir escolas inclusivas como forma de transformar a sociedade.
Quanto à frequência dos encontros, vai depender da dinâmica de cada escola, mas o ideal é que o tema educação inclusiva permeie todas as discussões de maneira transversal e apareça como tópico mais central pelo menos uma vez por mês no calendário formativo.
Uma forma de enriquecer os encontros é trazer registros de relatos de professores — como foi a participação dos alunos em eventos e em atividades extracurriculares, quais momentos de interação com os colegas valem ser destacados etc — e disponibilizar esse material para toda a equipe docente. “Um repositório físico ou digital. O importante é que seja compartilhado e que todos tenham acesso [a ele]”, indica Gunga. “Isso forma o cabedal de experiências da escola e pode servir de apoio para os professores. É um tesouro que muitas vezes não é considerado.”
Acompanhamento das formações
Com as formações em curso, um bom critério para avaliar se estão sendo efetivas, além de acompanhar o avanço das crianças, é refletir sobre quais barreiras da escola estão sendo destruídas ou afastadas. As devolutivas do professor regente e de outros docentes, sobretudo do AEE, são fundamentais.
Na Waldir Garcia, uma forma de a gestão acompanhar os resultados dos encontros formativos é por meio da autoavaliação dos professores e do diário de bordo — registros que os docentes fazem sobre as formações que tiveram, reflexões que surgiram e o dia a dia da sala de aula. “Ao olhar esses diários, eu vejo como eles estão trabalhando tanto em relação ao que foi visto nas formações como nas questões do cotidiano. A partir daí, socializamos as boas práticas, valorizando o professor e compartilhando aprendizados, e discutimos o que não deu certo também”, salienta Lúcia Santos, diretora da escola.
Gunga acrescenta que o objetivo das formações não pode ser apenas o enfrentamento dos impasses que os professores vivem com alguns alunos. “A avaliação desse processo deve considerar, sobretudo, os avanços que a escola fez como um todo, no sentido de imprimir uma marca cada vez mais forte e segura de ‘escola para todos’. Inclusão não é um problema a ser resolvido, mas uma prática de justiça e igualdade na escola e na sociedade.”
Como planejar as formações
Confira dicas para organizar os encontros formativos:
- Ouça a comunidade escolar: crie espaços de fala e escuta. As dificuldades e demandas identificadas vão ser a base do calendário formativo.
- Enxergue cada estudante como único: não existe receita pronta, é preciso identificar as barreiras que cada pessoa enfrenta e buscar eliminá-las. É o aluno, não seu diagnóstico, que determina quais estratégias pedagógicas devem ser desenvolvidas.
- Considere as experiências que a escola já teve: ao planejar as formações, leve em conta que a escola não está partindo “do zero”. Vale chamar especialistas e profissionais externos para trocar ideias, mas os professores que já lidaram ou estão lidando com as situações que surgiram também precisam ter voz ativa.
- Privilegie as práticas pedagógicas: o estudo teórico é fundamental e deve ser incentivado pela coordenação, inclusive disponibilizando materiais e fontes de estudo. Mas o foco deve ser o fazer pedagógico, isto é, como lidar concretamente com as questões que aparecem.
- Agende as formações: é importante definir os dias e horários nos quais serão realizadas, e com qual frequência, para planejar a estrutura necessária para que ocorram, uma vez que os alunos não podem ser liberados. Também vale pensar se será preciso buscar parcerias — considere especialistas, mas também as famílias.
- Tenha flexibilidade: o planejamento do cronograma formativo pode ser semestral ou anual, mas é importante que ele seja flexível para incorporar eventuais mudanças de acordo com o contexto de cada momento.
- Tente incluir todos os funcionários: as formações não devem se restringir aos professores. A escola é um ambiente formativo por excelência e deve oferecer oportunidades para que todos aprendam. Assim, o ideal é envolver todo mundo nas formações, da equipe docente ao pessoal da limpeza.
- Estimule que todos estudem sempre: a escola pode promover iniciativas para ampliar os saberes da equipe, como atividades de leitura e pesquisa individuais, em pares ou em grupos, e depois propor a socialização desse conhecimento.
- Avalie os encontros formativos: as formações estão contribuindo para a melhoria da prática pedagógica e para a instituição de fato ser uma escola para todos? O retorno dos professores e a observação da gestão são fundamentais para planejar e ajustar as reuniões seguintes.
Formação docente no centro da escola
Lúcia, que também atuou como coordenadora pedagógica em 2023, reforça que a formação docente continuada em serviço está no centro da Waldir Garcia. “Ela tem de ser pauta constante em toda escola. É preciso considerar a realidade e as necessidades específicas de cada instituição, personalizar essa formação, abrir espaço para ela acontecer e trazer também a educação inclusiva.”
Segundo a diretora, é necessário ter momentos de formação com todos, do porteiro à cozinheira, dos professores ao pessoal da limpeza. Isso porque a escola constitui um espaço formativo por excelência, então todos os atores devem ser corresponsáveis pelo processo de ensino e aprendizagem dos estudantes e, portanto, estar envolvidos nessas formações.
“Precisamos promover a inclusão e sabemos das dificuldades para [fazer] isso”, ressalta. “Em geral, os professores não estão preparados, principalmente aqueles que saíram da universidade há mais tempo, quando esse tema era pouco ou nada discutido, e os outros profissionais da escola não tiveram essa formação inicial.”
Gunga concorda: “É importante que todos do ambiente escolar passem por esses encontros formativos para construir essa dinâmica inclusiva. Vale lembrar que a formação não acontece só nas reuniões, mas também no dia a dia”.
Abrindo espaço para os encontros formativos
Na Waldir Garcia, que atende alunos dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, são quatro iniciativas voltadas para formações, além do calendário específico de educação inclusiva: tertúlias pedagógicas — que envolvem a leitura de uma obra e a discussão dela — almoços pedagógicos mensais, formações quinzenais e tutorias.
Assim como os alunos têm tutores, todos os funcionários contam com um tutor, que são voluntários da Secretaria de Educação e de universidades com as quais a escola tem parceria. São formados então grupos heterogêneos de estudo com cinco ou seis pessoas — a diretora, um professor e a pessoa que prepara a merenda podem estar em uma mesma turma, por exemplo. Eles estabelecem os temas e o cronograma de estudo, com dias e horários definidos, e os entregam à direção. As tutorias acontecem, em geral, a cada 15 dias e têm duração média de duas horas.
Mas como arrumar tempo e articular todas essas atividades de formação que incluem a escola inteira? Lúcia conta que, em sua escola, foi constituído um grupo de trabalho de apoio pedagógico, formado sobretudo por pais, mães e pessoas responsáveis pelos alunos, que assumem as turmas nos horários pré-estabelecidos em que os profissionais saem para estudar. “Tem um grupo que assume a cozinha, o portão, a sala de aula e assim por diante, pois não podemos suspender as aulas e a escola não pode deixar de funcionar”, explica.
São 30 funcionários que participam das formações, entre professores e demais profissionais, o que demanda outras 30 pessoas nos grupos de trabalho para substituí-los. O desafio dessa estratégia é planejar previamente esses momentos com orientações para as pessoas a respeito de quais funções irão assumir, ainda que temporariamente. E, no caso da saída de professores das salas, propor atividades significativas para os alunos. “Temos pais que são professores e outros não. Aqueles que não têm formação trabalham com oficinas, que são planejadas conosco. Por exemplo, culinária, contação de histórias, cantigas de rodas etc.”, explica Lúcia.
O papel essencial das famílias
Em Vitória (ES), o Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI) Gilda de Athayde Ramos atende 445 alunos com idade entre seis meses e seis anos. A diretora Darsônia Almeida Souza comenta que a escola tem apenas cinco dias de formação docente no calendário oficial do ano letivo, mas que os professores também usam os horários de planejamento semanal para se capacitarem.
Para este ano, as grandes temáticas das formações já foram definidas: meio ambiente/mudanças climáticas e inclusão da criança surda na escola regular, uma vez que a instituição vai receber três crianças surdas e deve se tornar um polo para atender esses alunos. “Não temos professores fluentes em Libras, eles possuem apenas a base da faculdade ou dos cursos da Secretaria de Educação. Mas eles vão ter essa formação, pelo menos os profissionais que vão lidar diretamente com essas crianças, e teremos um especialista todos os dias para nos ajudar”, conta Darsônia.
“Hoje quase todas as escolas do Brasil têm crianças com algum tipo de deficiência. E normalmente, nessa situação, a primeira fala do professor é: ‘Eu não tenho formação para isso’. Mas ele tem formação, sim, para ensinar, o que precisa é de novas estratégias. Então, cabe à equipe pedagógica pensar em um calendário de formação para apoiar e atender as necessidades desse professor, acolhê-lo e acolher também a criança e a família”, completa a diretora.
Para ela, a família é primordial para tirar dúvidas, ajudar no processo de aprendizagem e falar como é a criança no convívio diário. “Todos na escola devem entender a importância dessa parceria, que a família precisa estar dentro da escola.”
Lucia vai na mesma linha: “Além dos professores, para as formações trazemos pai, mãe, mediador e especialista. É a escola reconhecendo suas limitações e se colocando também no lugar de aprender. A articulação com as famílias, a comunidade e outros setores da sociedade é muito importante para ter essa ajuda, se superar e promover a inclusão e o ensino com equidade e qualidade”.