No Dia Nacional de Luta dos Povos Indígenas, ativistas e líderes de comunidades falam sobre dar continuidade a legados tradicionais
Dava pra ver, pelo basculante da cozinha, o movimento intenso dos aviões na pista do aeroporto de Cumbica, aterrissando e levantando voo. Eu ficava olhando – sempre que podia – e lembrando que foi lá que, fazia um mês, eu havia chegado daquela mesma forma, como aquelas pessoas que continuamente desembarcavam no aeroporto.
O movimento que os aviões faziam ao levantar voo, com suas asas enormes e bem abertas, fazia-me mergulhar em profundas lembranças, ainda bem vivas em minha memória, e me fazia recordar do voo do gavião real, cujo padrão comportamental, em muito, remetia-nos às nossas representações simbólicas mais tradicionais.
Eu ficava olhando para os aviões e considerava que, assim como a ave, recém-chegado a um novo território, eu não sabia que caminhos percorrer, ou em quais fontes buscar. Tinha apenas um grande desejo: conseguir obter uma boa formação profissional. E foi em busca desse objetivo que eu me lancei nesta nova floresta, uma floresta ‘de pedras’.
O relato é de Luar Sateré Mawé, ativista de direitos indígenas e de direitos ambientais, formado na Faculdade Paulista de Direito, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, desde 2015.
Vindo de Maués (AM) há 11 anos com objetivo de adquirir uma formação profissional em São Paulo, Luar reside atualmente na Terra Indígena do Jaraguá. O local possui cerca de 700 pessoas, sendo a maioria declarada principalmente da etnia Guarani Mbyá.
De acordo com o Censo Demográfico 2010, a população indígena brasileira ultrapassa 890 mil pessoas, sendo residentes de 7.103 localidades indígenas em mais de 827 municípios, segundo divulgação do IBGE em 2020.
Este ano, no Dia Nacional de Luta dos Povos Indígenas, as milhares de vozes dos povos originários soam em busca do reconhecimento por suas tradições, suas terras e por seus direitos ainda negados pela sociedade brasileira.
A data, instituída pela Lei n° 11.696 de 2008, marca a importância do respeito e da valorização dos povos tradicionais, que travam uma batalha de resistência e sobrevivência diariamente.
Ainda conforme os resultados do último censo realizado, existem mais de 300 etnias indígenas no país, falantes de 274 línguas diferentes. Tamanha diversidade não pode ser esquecida, como bem explica Luar:
“Para o não indígena, o ser indígena é sempre a mesma coisa, mas vale dizer que as realidades de cada povo são bem diferentes. Alguns povos, por sua localização de proximidade com os grandes centros urbanos, têm acesso a inúmeros benefícios, entre os quais a oferta do modelo educacional tradicional.
Outros povos, no entanto, pela escolha de um modo de vida mais isolado, preferem viver de acordo com seus costumes mais tradicionais e sobre isso não há dizer que estão errados.”
Respeito à diversidade na educação
Para Marilda Karapãna, segunda cacique da Aldeia Santa Maria Tarumã-Açu, localizada em Manaus (AM), a educação indígena, trabalhada na comunidade com a Secretaria Municipal de Educação de Manaus (Semed), é muito importante justamente para manter as diversas culturas vivas:
“É por meio de métodos pedagógicos que aprendemos a registrar a nossa história e a transformamos em material para ensinar nossas crianças e jovens.”
Ela conta que as ações sociais das famílias indígenas residentes no local começaram em 2007. Na época, o aumento dos casos de reintegração de posse expôs a necessidade da reinvindicação da terra e dos demais direitos: “Levamos nosso caso ao conhecimento das autoridades e, desde então, estamos nessa luta por moradia, território, saúde e educação inclusiva”.
Carmen Gattas, pós-graduada em filosofia e doutora em ciências da comunicação, tem declarações em consonância com as da segunda cacique e afirma que a luta pela demarcação de terras é uma das lutas mais antigas que, ao se resolver, possibilita que o indígena se estabeleça em seu território, tendo condições de lutar por outros direitos, como à educação.
Ao atuar na formação de educadores dos Centros de Educação e Cultura Indígena presentes em Parelheiros e no Jaraguá, pela Secretaria Municipal de Educação de São Paulo (SME), ela descobriu “um novo universo”:
“Em minhas formações, percebi o quanto o preconceito acaba por prejudicar os seres humanos no que diz respeito ao conhecimento. O sentimento de rejeição desperta um bloqueio que pode impedir que eles consigam aprender qualquer coisa uma vez que se sentem excluídos.”
A formadora desenvolveu trabalhos de educomunicação com objetivo de apoiá-los a usarem as mídias digitais, como YouTube, e as tradicionais, como rádio, jornal, fotografia, entre outros, para a exploração de sua língua, de sua forma de pensar e de sua cultura: “Tudo isso foi realizado de forma significativa, dando respeito e valor ao resgate e promoção da cultura Guarani”.
As crianças indígenas frequentam os Cecis até a adolescência e começam a sua alfabetização no ensino fundamental, em escolas estaduais. Contudo nem todas as unidades escolares estão preparadas para dar continuidade ao que aprendem nos Centros:
“É preciso facilitar o aprendizado que é bilíngue. Somente aquelas escolas cujos professores são indígenas estão preparadas de fato para trabalhar com as duas línguas e demais conhecimentos do currículo obrigatório.”
Samela Sateré Mawé, graduada em biologia e participante da Associação de Mulheres Indígenas Sateré Mawé (Amism) e do Movimento de Estudantes Indígenas do Amazonas (Meiam), afirma que, além do direito à educação, é necessária uma educação verdadeiramente inclusiva:
Precisamos de uma educação que respeite nossa cultura, nossa identidade, nossos costumes. É importante que as crianças tenham educação, mas que ela considere todas as nossas singularidades.
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Carmen reforça que, para que se amplie o conhecimento, é essencial dar voz à cultura ancestral dos povos indígenas: “Não devemos aniquilar seus conhecimentos, mas sim incluí-los em pesquisas. A sua forma de existir e olhar o mundo pode nos levar a muitas possibilidades de repensarmos a crise política, ambiental e humanista que vivemos hoje.”
Presença no ensino superior
Para a doutora, a necessidade de maior preparo dos centros educacionais para atender a todos não se restringe ao ensino básico. Carmen defende que a universidade reveja seu ensino, trabalhando mais com as humanidades, colocando os estudantes diante de situações reais para transformar os paradigmas.
“As questões humanistas e de inclusão devem fazer parte de qualquer curso. A formação de educadores possibilita a reflexão sobre esses temas. Sabemos que ir para uma sala de aula sem amar o que faz e sem respeitar a diversidade só reforça as barreiras.”
Samela vivenciou essa realidade em 2015, quando ingressou no ensino superior. Ela afirma que muitos estudantes não se identificavam como indígenas por conta do preconceito, mas a união desses alunos criou uma rede de apoio que, em diálogos com antropólogos, fortaleceu seu empoderamento e incentivou sua autoafirmação.
É muito importante que outros jovens indígenas se deem conta de que as nossas vozes são importantes, nós podemos fazer a diferença na nossa geração. Somos protagonistas da nossa própria história.
Luta dos povos indígenas
Marilda declara que sempre houve discriminação e preconceito em relação aos povos indígenas, mas que eles procuram viver em seus costumes: “Hoje as pessoas até procuram respeitar, mas sempre precisamos reafirmar nossa identidade étnica. Não é fácil, principalmente no momento atual em que as minorias não são bem vistas pelos governantes”.
Para a bióloga Samela, a grande mudança sobre como os povos indígenas são vistos e tratados na sociedade está acontecendo agora, com a luta do movimento tendo aumento de visibilidade nas mídias sociais, mas suas presenças também devem ocupar espaços de tomadas de decisão:
Percebi que minha voz é muito importante enquanto jovem, a minha percepção enquanto mulher, enquanto indígena, é muito importante e tem muito a contribuir com os povos indígenas e para minha comunidade.
Sobre como garantir os direitos dos povos indígenas, respeitando suas tradições e formas de vida, Carmen afirma ser necessária a inclusão social e uma maior visibilidade nas mídias, além do respeito à sua educação por meio de escolas que preservem sua cultura.
Conforme explica Carmen, o direito à educação é uma das partes do conjunto de direitos sociais, que têm como inspiração o valor da igualdade entre as pessoas, que no caso dos povos tradicionais acontece ao serem garantidos outros dos seus direitos, como o direito à terra.
Ela ressalta, ainda, a importância de a educação indígena formar cidadãos que conheçam criticamente o funcionamento do pensamento do juruá (não indígena), as leis que regem sua nação e seus direitos para, então, poder dialogar de forma igual.
A educação os empodera e os faz resistir de forma digna, numa luta que envolve todos os direitos.
Covid-19 e a população indígena
A principal luta dos povos indígenas atualmente tem sido em relação à pandemia causada pela Covid-19. Segundo Marilda, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) não atende indígenas que não residam em aldeias e em terras reconhecidas como indígenas pela Fundação Nacional do Índio (Funai). Dessa forma, muitos indígenas que residem em centros urbanos permanecem sem atendimento médico e sem acesso à vacina.
Segundo Marilda, quando essas pessoas vão para os hospitais, muitas vezes não têm sua origem declarada nas fichas de internação, são considerados de origem não indígena e isso deveria mudar:
“Gostaria que a lei criada para atender somente povos indígenas aldeados fosse revista na saúde indígena, porque indígena é indígena onde quer que vá, sua identidade não muda.”
Fora as questões sobre atendimento médico, ainda há famílias sem a possibilidade de exercer a agricultura familiar, que tem sido o sustento de alguns povos nesse momento:
“Aqui temos o rio onde podemos pescar, temos a mata para fazer a coleta de frutos, e assim a gente vai passando. Temos apoio do Ministério da Saúde e de outros parceiros que têm nos ajudado na questão de alguns suplementos de apoio, como cesta básica”, diz Marilda.
A segunda cacique afirma que, por conta deste contexto, muitos indígenas estão em busca de trabalho, mas que uma das fontes de renda na aldeia continua sendo o artesanato, como a produção de artes em madeira.
Relevância do trabalho artesanal
Samela, que também reside em Manaus, declara que, como uma comunidade indígena que vive em contexto urbano, sem a renda do artesanato eles não teriam como adquirir alimento. A associação precisou reinventar a elaboração de seu artesanato tradicional para continuar levantando fundos:
“A partir da ideia de um grupo de artistas do Reino Unido, começamos a fazer máscaras e, com essa iniciativa, crescemos em visibilidade. Conseguimos doações de cesta básica, de alimento, de kit de higiene e de limpeza… assim pudemos ajudar outros parentes indígenas. A ajuda que recebemos foi de organizações não governamentais, de pessoas físicas e outros coletivos.”
Já em São Paulo, Carmen abriu uma loja virtual e uma conta no Instagram para a comercialização dos trabalhos manuais feitos pelos indígenas das comunidades em que atua. Além de auxiliar no comércio das peças, a página também divulga as culturas de suas diversas etnias.