Braile nos dias de hoje: objeto de vitrine ou ferramenta indispensável?

Há cerca de 5 mil anos, a humanidade obtinha uma de suas maiores conquistas: a escrita. Por meio de caracteres gráficos adaptados pelas diferentes civilizações, passamos a receber e a transmitir conhecimentos, o que foi fundamental para que chegássemos ao atual estágio de evolução social, cultural, científica, tecnológica e intelectual. Com a invenção da imprensa por Gutenberg, em 1455, essa difusão da informação passou a ser ainda mais rápida e fácil.

Buscando permitir que também as pessoas com deficiência visual pudessem se beneficiar dessa evolução, foram feitas muitas tentativas em diferentes partes do mundo para o desenvolvimento de alfabetos palpáveis. Esses esforços fracassaram por não se adequarem às especificidades da leitura tátil. Só em 1784, o filantropo Valentin Haüy fundou, em Paris, a primeira escola para cegos do mundo. Ali, os estudantes aprendiam a ler por meio da impressão de caracteres latinos em relevo linear. Esse processo, contudo, não lhes permitia a escrita.

No ano de 1819, o pequeno Louis Braille (1809-1852) – que havia perdido a visão aos três anos de idade em consequência de um acidente na oficina de seleiro de seu pai – entrou para a instituição, onde foi alfabetizado pelo método de Haüy. Em 1822, o garoto, dono de uma inteligência brilhante, teve sua atenção despertada pelo capitão Charles Barbier de la Serre, que apresentou aos alunos um sistema que havia desenvolvido para a comunicação noturna entre soldados e que ele pensava que poderia ser utilizado por pessoas com deficiência visual. A técnica do oficial apresentava a desvantagem de ser apenas fonética, mas Braille a utilizou como base para o desenvolvimento de sua própria metodologia, cuja primeira versão foi apresentada em 1825.

O Sistema Braille, baseado na combinação de seis pontos em relevo, permitia a representação do alfabeto e dos números, da simbologia matemática, fonética e musicográfica. Adaptava-se plenamente às peculiaridades da leitura tátil, pois cada caractere podia ser percebido pela parte mais sensível dos dedos por meio de apenas um toque. Apesar de ter levado algumas décadas para ser aceito na França, antes do final do século XIX, ele já havia se difundido pela Europa e por outras partes do mundo.

No Brasil, o método foi introduzido por José Álvares de Azevedo (1830-1854), jovem cego que havia estudado em Paris. Graças a seus esforços, foi fundada em 1854, no Rio de Janeiro, a primeira escola para pessoas com deficiência visual da América Latina – o Imperial Instituto dos Meninos Cegos, hoje, Instituto Benjamin Constant. Além da educação, a instituição dedicou-se também à produção dos primeiros livros em braile no país.

Durante esses quase dois séculos, a técnica vem sendo utilizada como meio de escrita e leitura e é reconhecida como o instrumento mais preciso e eficaz para que os que já nasceram com deficiência visual ou que perderam a visão nos primeiros anos de vida tenham acesso ao conhecimento e formem conceitos sobre seres, objetos, formas e realidades que a ausência do sentido lhes torna inacessíveis.

O braille na era digital

A partir da década de 1960, diferentes países criaram comissões de braile, representações formadas por pessoas que conhecem profundamente o sistema e reconhecem nele um instrumento indispensável à verdadeira inclusão dos cegos. Esses grupos trabalham para manter as características do método e para adaptá-lo às necessidades da rápida evolução científica e tecnológica de nossos tempos.

Com o advento dos softwares para a produção de textos e das impressoras automatizadas, a produção de livros em braile tornou-se mais fácil e rápida. Ao mesmo tempo, obras faladas e digitalizadas, o desenvolvimento de leitores de tela e muitos outros recursos estão tornando mais rápido o acesso à informação e à cultura, e facilitando a educação e profissionalização de pessoas com deficiência visual. Entretanto, a tecnologia não deve ser vista como uma substituta da técnica, mas como um complemento a ela.

E explico o por quê.

A verdadeira educação de crianças cegas só acontece quando elas dispõem de livros que contenham a representação dos símbolos da matemática, química, física e de outras ciências e a impressão, em relevo, de tabelas, gráficos, mapas, figuras geométricas e outras ilustrações que lhes forneçam os mesmos dados oferecidos aos estudantes videntes. E o que dizer dos surdocegos, que tem o braile como forma única de escrita e leitura e, consequentemente, como meio exclusivo de acesso à educação, à cultura e à informação?

Devemos também considerar que, para muitos, nada substitui o prazer de ter uma obra impressa nas mãos, sentindo-lhe o cheiro, virando-lhe as páginas em busca de novas revelações ou voltando-as para reviver as sensações agradáveis do que já foi descoberto. Cabe aos pais ou responsáveis e aos professores estimular as crianças com deficiência visual a utilizar o sistema e aos governantes oferecer os recursos para que isso se concretize. Caso contrário, estaremos transformando-as em analfabetas funcionais.

Os modernos displays braile, que já vêm sendo largamente utilizados em muitos países, são capazes de resolver as dificuldades de armazenamento e permitem que pessoas cegas possam ler com autonomia em todo lugar e a qualquer momento. Entretanto, o alto custo desses equipamentos ainda os torna inacessíveis para a maioria dos cidadãos.

Além disso, o braile é importante mecanismo para a independência e até mesmo para o lazer, fatores relevantes para a autoestima. Entrar sozinha em um elevador, encontrar a marca, a fragrância ou o sabor de seus produtos preferidos nas gôndolas dos supermercados, ler com tranquilidade os cardápios nos restaurantes, ingerir ou administrar um medicamento com segurança, consultar com privacidade faturas ou contas de consumo são atividades que muitos cegos desempenham graças ao método. Resolver palavras cruzadas, caça-palavras, enigmas e outros passatempos, jogar cartas com outras pessoas com deficiência visual ou mesmo com videntes, identificar as etapas de jogos de tabuleiros são algumas das distrações que só a técnica é capaz de proporcionar. Como forma de propaganda e marketing, é cada vez mais comum vermos pontos braile estampados em joias, objetos de adorno, lado a lado com textos em tinta.

Vemos de maneira positiva essa divulgação, mas, por outro lado, é cada vez maior o número de pessoas cegas que não sabem ler e escrever e torna-se, inclusive, mais difícil encontrar profissionais que possam atuar como revisores ou desempenhar com competência outras atividades nas quais o domínio do método é imprescindível.

Não devemos permitir que o braile se torne um objeto de vitrine, que muitos podem olhar, mas poucos podem tocar. Devemos lutar para que ele continue sendo uma ferramenta indispensável para a verdadeira educação de crianças e jovens com deficiência visual e para a satisfação de todos os que valorizam a autonomia, a independência e a cidadania.

 

Regina Oliveira é formada em Letras, é Membro do Conselho Iberoamericano e do Conselho Mundial do Braille e coordenadora da revisão de materiais em braile na Fundação Dorina Nowill para Cegos. É cega desde os sete anos.

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