Autodefensores colocam em prática o lema “nada sobre nós sem nós”
O movimento promove momentos formativos para que pessoas com deficiência conheçam os marcos legais e possam defender os próprios direitos e interesses em espaços de poder
“Nada sobre nós sem nós.” O lema que ganhou força durante a elaboração da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência das Organizações das Nações Unidas (ONU), em 2006, indica ser essencial a participação das próprias pessoas com deficiência nos processos de tomada de decisão a respeito de questões que afetam a vida desse público, visando suas necessidades e seu bem-estar. Como fazer isso na prática? Uma das estratégias é a autodefensoria, conceito que envolve autonomia, representatividade e empoderamento.
Edna Maia, coordenadora da autodefensoria nacional da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down (FBASD), explica que esse movimento mundial surgiu para que as pessoas com deficiência entendessem o que está sendo reinvidicado e ocupassem seu lugar de fala. Em outras palavras, os próprios indivíduos reconhecem e assumem a responsabilidade por seus interesses, muitas vezes com a participação das famílias e de profissionais que lutam pelas mesmas causas.
O primeiro grupo de autodefensoria na FBASD surgiu em 2016, formado por 14 jovens com trissomia do cromossomo T21, que começaram a se reunir para discutir a prática. “Eles foram estudando as leis e começaram a participar de eventos e atividades representando pessoas com Síndrome de Down”, lembra a coordenadora. “Em 2021, a Federação percebeu que era importante ampliar esse movimento e decidiu abrir grupos regionais, para que outras pessoas tivessem a chance de conhecer a autodefensoria.”
O trabalho da autodefensoria
Um dos principais objetivos de um grupo de autodefensoria é capacitar indivíduos para ampliar sua atuação e defender seus direitos de maneira independente. Isso inclui, por exemplo, a oferta de encontros formativos para que pessoas com deficiência intelectual conheçam os marcos legais e desenvolvam habilidades de argumentação e autodefesa nos espaços políticos. Também faz parte do trabalho promover a conscientização pública sobre os desafios enfrentados pelas pessoas com deficiência, debater as mudanças sociais necessárias para efetivar a inclusão e a igualdade e engajar-se ativamente em processos de formulação de políticas públicas.
Diante de todas essas demandas, é importante criar espaços para encontro e troca de experiências, a fim de oferecer apoio emocional e oportunidades para compartilhar estratégias.
Os grupos regionais de autodefensoria das pessoas com Síndrome de Down surgiram nesse contexto: “Hoje, nós temos 120 autodefensores e estamos realizando um curso de formação de mediadores com outras 105 pessoas para que, depois, possamos criar mais grupos locais e inserir mais jovens na autodefensoria”, conta Leide Maia, coordenadora da autodefensoria na região Sudeste. “Assim, eles vão poder participar de discussões relacionadas à defesa dos seus próprios direitos para poderem representar a federação e a si mesmos.”
Os mediadores, que também fazem o papel de advocacy, atuam para facilitar a comunicação das pessoas com Síndrome de Down em contextos educacionais, de trabalho, médicos e sociais. Isso pode incluir tradução de linguagem complexa para uma mais simples e acessível, além da adaptação de técnicas de comunicação, como o uso de apoios visuais, a ampliação do vocabulário e o estímulo às habilidades auditivas, sempre respeitando as singularidades de cada um.
Obstáculos a superar
O movimento da autodefensoria é feito de forma voluntária por todas as pessoas que o integram: autodefensores, mediadores e coordenadores. “Isso faz com que a sustentabilidade do trabalho seja um desafio constante e demonstra a urgência na obtenção de apoio e financiamento para os encontros presenciais, já que tudo é feito com recursos dos próprios membros e seus familiares”, pontua Edna.
Outro desafio apontado por ela é o de articulação e diálogo com outras organizações sobre pautas comuns entre todos os movimentos de defesa dos direitos das pessoas com deficiência: “Por exemplo, defendemos uma escola inclusiva, o que está diretamente relacionado à qualidade da escola brasileira para estudantes com e sem deficiência. Quando lutamos por mais recursos e acessibilidade, também lutamos por uma escola de qualidade, diversa e plural — a escola para todos”.
As diferentes situações de capacitismo que as pessoas com deficiência enfrentam diariamente, como as que refletem a crença de que elas não têm potencial, também representam dificuldades para o trabalho da autodefensoria. Por isso, tanto Leide quanto Edna destacam que a autodefensoria é um movimento que envolve mudanças profundas na cultura e na sociedade. Mas elas asseguram que “os autodefensores vêm romper com essa visão e com essa forma de colocar a pessoa que tem uma condição diferente como se fosse alguém de menor valor”.
A luta por direitos e representatividade
Bruno Ribeiro, 31 anos, é membro da autodefensoria nacional da FBASD desde 2016. O recifense é formado em turismo e atua com os autodefensores do Nordeste. Ele conta que foi convidado para integrar um grupo de jovens que discutiria os direitos das pessoas com Síndrome de Down e as estratégias para defendê-los, o que o motivou a ser mais ativo nesse propósito.
Atualmente, Bruno participa dos eventos das autodefensorias da FBASD e de outras instituições e mantém contato com entidades do Recife para reivindicação de direitos e acessibilidade para pessoas com todos os tipos de deficiência, além de dar palestras usando comunicação alternativa.
Entre os impactos dessa atuação, ele destaca o estímulo para a adesão dos colegas ao movimento, a conquista de mais visibilidade e respeito para pessoas com Síndrome de Down e o aumento dos espaços de fala na escola, no mercado de trabalho e na sociedade em geral. “Meu maior desafio como autodefensor é que sejamos incluídos de verdade e que nossas capacidades sejam reconhecidas. Fazemos isso principalmente existindo, mostrando que podemos e que, se nos for dada a chance, daremos conta”, diz ele.
Rede nacional contra o capacitismo
Por meio da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização de Jovens e Adultos, Diversidade e Inclusão (Secadi), o Ministério da Educação (MEC) iniciou, neste ano, a formação de uma Rede Nacional de Autodefensoria contra o Capacitismo e em favor da Educação Inclusiva, que deve incluir pessoas com deficiência intelectual e psicossocial. Segundo Cléo Bohn, presidente da FBASD, o principal objetivo é reforçar para a sociedade a mensagem de que a pessoa com deficiência tem o direito de estar na escola ao longo da vida.
Cléo afirma que a iniciativa vai demonstrar a capacidade dessas pessoas pelo exemplo: “Entre os autodefensores com Síndrome de Down, por exemplo, nós temos professores, pedagogos, biólogos, advogados, relações públicas e muito mais. Vamos mostrar que é possível, que precisamos oferecer a todos a oportunidade de tentar, porque, comprovadamente, eles podem ocupar esses lugares”, evidencia.
A presidente da FBSAD explica que houve um encontro em Brasília (DF), em maio de 2024, para que os autodefensores de cada instituição participante dessa Rede (Escola de Gente, Instituto Jô Clemente e Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas Autistas) pudessem apresentar seu trabalho e mostrar como atuam. Com base nisso, foi elaborado um documento para que a rede seja institucionalizada [as instituições seguem trabalhando na finalização desse material e aguardando encaminhamentos junto ao MEC].
De acordo com Cléo, cada vez mais a FBASD tem levado membros da autodefensoria a eventos públicos e institucionais, debates promovidos em assembleias, câmaras de vereadores e outros espaços como esses para que eles possam expressar sua capacidade. “Queremos mostrar que as pessoas com Síndrome de Down conhecem seus direitos, que estudaram, que podem se casar e ter filhos, o que para muitos é uma surpresa. Na medida do possível, estamos valorizando essa atuação, colocando o próprio autodefensor para falar sobre a realidade dele”, conclui.
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