Direitos das pessoas com deficiência: avanços e recuos, segundo relatora da ONU

Em entrevista, Heba Hagrass faz um balanço da implementação da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Ela comenta o comprometimento dos países signatários, mas destaca os retrocessos trazidos pela Covid-19

Na sala de conferências da Organização das Nações Unidas, a ONU, de Nova York, Heba Hagrass está no centro do palco, diante do microfone. Ela é uma mulher de pele branca, com cabelos curtos e claros e faz uso de uma cadeira de rodas motorizada. Atrás dela, na parte mais alta do palco, estão um homem e duas mulheres sentados. Fim da descrição.
Heba Hagrass, relatora especial da ONU para direitos das pessoas com deficiência, discursa na abertura da 17ª Sessão da Conferência dos Estados Partes da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, realizada em junho, em Nova York. Crédito: ONU/Loey Felipe

“As pessoas com deficiência estão sendo deixadas para trás.” Esta é a principal conclusão do relatório Deficiência e Desenvolvimento 2024, apresentado pela Organização das Nações Unidas (ONU), que acompanha a implementação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), a serem alcançados até 2030. Um dos principais responsáveis pelos retrocessos vistos nos últimos anos foi, segundo o relatório, a pandemia de Covid-19. “Muitos dos países mais avançados decidiram deixar as pessoas com deficiência de lado durante a crise”, afirma Heba Hagrass, relatora especial da ONU para direitos das pessoas com deficiência. 

Apesar de 90% dos países terem priorizado as pessoas com deficiência nas campanhas de vacinação durante a pandemia, o mesmo não ocorreu com outras necessidades. Apenas metade das famílias com estudantes com deficiência receberam suporte financeiro para acessar recursos tecnológicos ou alguma outra assistência que permitiria a eles participar do ensino remoto, e menos da metade dos países incluiu esse público entre aqueles que precisavam de medidas de proteção social.   

No geral, o relatório da ONU aponta que 30% das metas dos ODS avançaram de forma insuficiente e que 14% delas não foram cumpridas, ficaram estagnadas ou retrocederam. Os desafios são apontados sobretudo no acesso a água, energia, tecnologias da informação e serviços financeiros e de saúde.  

No campo educacional, o relatório aponta avanços: 87% dos países têm leis ou políticas que protegem o direito das pessoas com deficiência à educação. Em 2016, esse patamar era de 74%. Além da aprovação de novos marcos legais, a implementação das políticas caminhou, mas não no ritmo desejado. Comparando com o cenário de 2016, os países que disponibilizam materiais acessíveis passaram de 34% para 47%, e o percentual de escolas com ambientes físicos acessíveis ampliou de 18% para 38%.  

Contudo, um dado bastante preocupante é o fato de somente 17% dos países garantirem legalmente uma educação inclusiva, em que estudantes com e sem deficiência estejam ​​na mesma sala de aula. A exclusão escolar também é destacada: 11% das crianças com deficiência em idade de frequentar o ensino primário estão fora da escola. Este dado aumenta para 32% no ensino secundário (equivalente ao ensino médio no Brasil). 

Heba, originalmente do Egito, esteve envolvida na elaboração dos primeiros rascunhos da Convenção da Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, de 2006, quando trabalhava em organizações do terceiro setor. Desde novembro, é a relatora que acompanha a implementação da convenção ao redor do mundo. “Vejo um compromisso forte de todos os países signatários, o que me enche de esperança”, afirma ela. Em entrevista dada ao DIVERSA, ela faz um balanço da implementação da convenção e destaca os desafios para a continuidade desse trabalho. 

A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência completou 18 anos em 2024. Qual o balanço que você faz desde a implementação dela até hoje? 

A convenção foi muito bem recebida pelo mundo todo. Prova disso é que os países se mobilizaram em tempo recorde para ratificá-la. Mas as propostas trazidas por ela exigiam uma mudança de sistema, e havia uma diferença muito grande no nível de preparação dos países para implementá-la. Em alguns territórios, principalmente na Europa, já havia algumas das estruturas necessárias, enquanto outros precisaram criar ferramentas, mecanismos, políticas e estratégias para que ela pudesse ser implementada. Hoje, é possível dizer que todos os países que a ratificaram estão fazendo progresso significativo. É claro que há ritmos diferentes ao redor do mundo, mas é importante mostrar que há um compromisso real de todos. A aprovação da convenção criou um impulso muito grande na promoção dos direitos das pessoas com deficiência. O grande empecilho que tivemos, desde que a convenção entrou em vigor, foi a pandemia de Covid-19, que provocou muitos atrasos em relação aos direitos das pessoas com deficiência. 

Qual é o principal avanço visto hoje em relação ao que a convenção determina? 

Mesmo os países que já possuíam melhores condições para fazer a implementação tinham desafios em relação à maneira como enxergavam a deficiência. Em todas as partes do mundo, as pessoas com deficiência eram vistas como alvo de caridade ou assistencialismo. A convenção trouxe um novo modelo [social], que determina a deficiência não como um defeito dos nossos corpos, mas da sociedade que não acomoda as diferentes necessidades de diferentes pessoas. Além disso, ela enfatizou que esse é um modelo de direitos e, portanto, de igualdade [de condições e oportunidades], algo que é mencionado em todos os artigos da convenção. Essa é uma visão com a qual todos os países se comprometeram e que, ainda que não esteja totalmente presente no dia a dia de cada sociedade, está amparada por políticas e estratégias. 

E em relação à educação inclusiva, qual é o panorama da implementação? 

A educação inclusiva, assim como o acesso à saúde e ao mercado de trabalho, é uma das grandes questões com as quais os países precisam lidar. Após a ratificação da convenção, a maioria dos países confirmou seu compromisso com a educação inclusiva, mas sinalizaram que precisariam de tempo para preparar suas escolas. Há o desafio, aqui, de fornecer acessibilidade, com acomodações, por exemplo, para deficiências auditivas ou visuais. Os países se comprometeram com um cronograma próprio dessa implementação, e há avanços sendo feitos, mas o ritmo não é o esperado. Não acredito que haja nenhum país que possa dizer plenamente: realmente equiparei na educação uma criança com deficiência com qualquer outra criança. Mas sempre tenho esperança, porque vi as coisas começarem do zero e sei que, agora, melhorar de onde estamos é muito mais fácil do que foi dar o passo inicial.

Por que isso acontece? 

A promoção da educação inclusiva se mostrou mais complexa do que parecia inicialmente. Há, primeiro, um desafio de financiamento, pois é necessário haver recursos financeiros para a criação desse sistema. Mas, além disso, o que mais me surpreende é a dificuldade cultural para fazer as famílias entenderem o valor da educação inclusiva. Infelizmente, ainda há muita resistência. Muitas famílias acreditam que a presença de uma criança com deficiência irá fazer com que o resto da turma se atrase ou que o professor gaste mais tempo com essa criança do que com o restante do grupo. Essa é uma experiência que eu mesma vivi, sendo uma estudante que usava cadeira de rodas em um contexto de educação inclusiva. Simplesmente pelo fato de me locomover com a cadeira, as pessoas imaginavam que eu não conseguiria entender e acompanhar as aulas.  

Como mudar esse cenário? 

O dinheiro é uma grande questão, mas também precisamos convencer pais e responsáveis de que ter crianças com deficiência na sala de aula melhora o processo educativo para todos. Quando você usa os novos métodos e estratégias que apoiam na educação de pessoas com deficiência, você está alcançando todos, e o nível de aprendizagem da turma melhora. 

Você mencionou que a pandemia de Covid-19 gerou um retrocesso. Quais as consequências da pandemia que ainda vivemos? 

Antes da Covid-19, nós víamos que todos os países estavam caminhando, em seu próprio ritmo, para a implementação. Mas a pandemia cortou o impulso que estava se criando. Muitos países, quando tiveram de pensar em como apoiar as pessoas com deficiência, perceberam fraquezas no sistema que estavam criando, principalmente por conta da falta de flexibilidade para nos atender em uma situação de emergência. Muitos lugares decidiram que iam priorizar as pessoas sem deficiência e só depois decidir como cuidar das pessoas com deficiência, o que foi um retrocesso muito grande e nos deixou muito desapontados. A noção, por exemplo, de não poder tocar uma pessoa ou tocar objetos não faz sentido para todas as pessoas com deficiência. Como você trancaria seu filho em um quarto ou faria uma pessoa cega se locomover sem tocar superfícies? Todos os países que tinham um sistema muito forte implementado não tinham a atitude inovadora que as pessoas em países pobres e em desenvolvimento têm, para criar soluções das suas cabeças e ajudar uns aos outros. Os países com sistemas fortes foram aqueles em que houve mais reclamações de que o sistema não respondia ao bom senso sobre como as pessoas com deficiência deveriam viver naquele contexto. Foi nesses locais em que as pessoas reclamaram, por exemplo, por não poder ter assistência pessoal durante a pandemia. Foi muito surpreendente que os países mais pobres lidaram com a Covid de uma maneira mais espontânea. 

Como a Covid-19 impactou a educação inclusiva? 

O impacto foi grande, como para todos os estudantes. Mas houve uma oportunidade interessante. Quando as aulas foram transferidas para o ensino remoto, ao menos parte das crianças com deficiência conseguiu se adaptar de maneira mais fácil porque já estava acostumada a passar mais tempo trabalhando com suas ferramentas [de tecnologia assistiva] ou em seus computadores. Ou seja, a educação inclusiva já trabalhava com algumas das estratégias que precisaram ser utilizadas. Conseguimos ver que muitas delas continuam em uso, mesmo agora que as escolas já reabriram. 

Como estão a implementação e o engajamento dos países da América Latina, como o Brasil? 

Na verdade, eu vejo que, entre as regiões em que trabalhamos, a América Latina se destaca pelo entusiasmo em alcançar os países que já estavam com um sistema mais avançado. É por isso também que eu solicitei uma visita a um país da região, porque sinto que observar mais de perto o que tem acontecido irá abrir meus olhos como relatora especial. Nesses países, é possível notar que as mudanças têm ocorrido de maneira rápida, então, com certeza há algo a se aprender na região para ser transferido a outros países com situação e cultura parecidas. Vemos como os sistemas têm melhorado, inclusive na maneira como o dinheiro voltado às ações para pessoas com deficiência é gasto. 

Nos últimos anos, as mudanças climáticas têm se mostrado um grande desafio. Qual o impacto delas para a implementação da convenção e para a promoção da educação inclusiva? 

Sim, a mudança climática e todas as crises humanitárias como as causadas pelas guerras — são dois pontos sobre os quais temos trabalhado intensamente. Temos visto que a ajuda humanitária age de uma maneira bastante padronizada, lidando com todas as pessoas com as mesmas regras. Mas isso não contempla todos. É preciso considerar que as pessoas são diferentes e as suas necessidades também. Durante uma situação de emergência, não posso salvar uma criança e deixar sua cadeira de rodas para trás, por exemplo. Ao atender as pessoas em situações extremas, é preciso considerar as condições para que elas continuem vivendo suas vidas em um novo contexto. Se uma criança está em uma região afetada por uma tragédia, é importante garantir que a vida dela seja salva, mas também que ela rapidamente seja atendida nas suas necessidades, inclusive educacionais. Esperamos que as equipes dos países sejam treinadas para lidar com essas situações, entender a flexibilidade necessária e garantir os direitos de todas as pessoas, o que envolve também muito planejamento. 

Para avançar com a educação inclusiva  

O relatório da ONU indica uma série de ações a serem efetivadas pelos países para garantir uma educação de qualidade para todas as pessoas com deficiência. São elas:  

  • Criar leis e políticas públicas que assegurem uma educação inclusiva;
  • Expandir a educação inclusiva para todos as etapas de ensino;
  • Implementar princípios do desenho universal para aprendizagem (DUA) nas escolas;
  • Fornecer acesso a tecnologias assistivas;
  • Oferecer formação em educação inclusiva para todos os professores e contratar docentes com deficiência;
  • Promover parcerias entre organizações representativas das pessoas com deficiência, comunidades, famílias, cuidadores, jovens, profissionais da educação e outras partes interessadas em construir uma educação inclusiva;
  • Promover e articular um trabalho intersetorial entre as áreas de educação, saúde e assistência social;
  • Mitigar as perdas de aprendizagem entre estudantes com deficiência causadas pelo fechamento das escolas durante a pandemia de Covid-19.  

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