Como ensinar crianças a se protegerem?

Projeto “Eu Me Protejo” disponibiliza materiais acessíveis e com linguagem simples para apoiar famílias, escolas e comunidade no combate à violência sexual infantil

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Prevenção. Esse é o principal objetivo da iniciativa “Eu Me Protejo”, criada em 2019 para apoiar famílias e educadores no combate à violência sexual infantil. O projeto aposta na produção e disseminação de materiais gratuitos — elaborados seguindo as diretrizes da Linguagem Simples e do Desenho Universal para a Aprendizagem (DUA) — para orientar crianças de até oito anos sobre os seus corpos e como protegê-los. O tema é abordado em diferentes formatos, como cartilhas, livros, músicas, poemas, teatro de fantoches, entre outros recursos, que podem ser utilizados em casa, escolas, igrejas e outros espaços. 

A proposta visa mobilizar a sociedade para o enfrentamento de um triste cenário vivido no Brasil: 76% dos casos de violência sexual registrados no país foram praticados contra pessoas vulneráveis, sendo 11,1% delas crianças de até quatro anos e 18% crianças de cinco a nove anos, segundo dados de 2023 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Para Neusa Maria, psicóloga especialista em saúde mental e uma das idealizadoras do projeto, é necessário sempre buscar caminhos que evitem agressões de qualquer natureza. “Nós, adultos, precisamos entender que o melhor remédio é a prevenção. Quando a criança conhece o seu corpo e sabe o que é certo e errado, ela está mais preparada para procurar ajuda e acionar um adulto de referência sobre qualquer tentativa de violência contra ela mesma. Entretanto, a família, a escola e a comunidade precisam ouvir a criança e acreditar em seu relato.” 

Patrícia Almeida, jornalista, especialista em estudos da deficiência pela City University of New York (Cuny) e idealizadora do “Eu Me Protejo”, salienta que a proposta é uma novidade no país. “O nosso conteúdo, feito com imagens e textos diretos e de fácil entendimento, é algo inédito no Brasil ao tratar do combate à violência sexual infantil. Em alguns outros países, como Escócia, Suécia e Inglaterra, já se aborda o tema em diferentes formatos. Ao tomar a decisão de incluir as crianças com deficiência como nosso público, nos tornamos pioneiros no mundo, uma vez que nunca foi pensado nada parecido para essas pessoas.” 

Como tudo começou 

Foi a partir da experiência pessoal de Patrícia que o “Eu Me Protejo” foi idealizado. Por cinco anos, ela morou na Suíça com seu esposo, ambos funcionários do Ministério das Relações Exteriores, e sua filha Amanda, que tem Síndrome de Down. No país, não há políticas de educação inclusiva e, por isso, Amanda não frequentou nenhuma escola regular no início da adolescência.  

“Procurei escolas para ela, mas, sempre que mencionava a deficiência, vinha a rejeição. Busquei escolas até na França, já que morávamos próximo à fronteira, e a resposta era a mesma. A alternativa foi ela frequentar uma clínica especializada, com acompanhamento multidisciplinar. Ou seja, ela não teve muito contato com crianças e jovens da idade dela”, conta Patrícia. 

Em 2018, quando retornou ao Brasil e Amanda estava com 15 anos, Patrícia viu a oportunidade de a filha retornar a escola regular, a qual frequentou nos anos iniciais do ensino fundamental. Mas a boa expectativa contrastou com o medo de como seria a relação com os demais estudantes. “As crianças com deficiência têm ainda mais dificuldade em reconhecer quando estão sendo vítimas de violência, dado que falar sobre prevenção com esse público é mais raro do que com os demais. Com medo do que poderia acontecer com a minha filha, comecei a pesquisar para montar uma cartilha que unisse educação e autoproteção. Construí um material com pouco texto, concreto, literal, ilustrado e de fácil compreensão, que pode ser usado por todos”, relata a mãe. 

Patrícia teve o cuidado de testar o conteúdo com outras mães antes de chegar à versão final. Depois disso, começou a compartilhar a cartilha e a apresentá-la em palestras sobre o tema. Foi em um desses eventos que Neusa Maria conheceu a iniciativa e demonstrou interesse em utilizar em seu trabalho.  

“Quando vi aquele material me encantei e sabia que seria um grande aliado para quebrar o tabu sobre o combate à violência sexual infantil. Em minha trajetória de luta pelas pessoas em situação de vulnerabilidade e pela defesa dos direitos humanos, sabia que era algo inovador e importante para se discutir  —  sobretudo por ser um tema complexo.” 

Nesse momento de troca entre elas, o material foi aperfeiçoado e o projeto passou a contar com uma equipe composta por outros profissionais. Sempre de maneira on-line, o “Eu Me Protejo” ganhou forma e força com a união de um grupo de 50 profissionais das áreas de educação, comunicação, psicologia, direito e medicina, além de ativistas pelos direitos humanos e das crianças.  

“O sucesso da iniciativa deve-se, justamente, à diversidade de olhares presentes em toda a elaboração. A participação voluntária de advogados, professoras, psicólogas, jornalistas e outros profissionais, sendo que alguns deles têm deficiência, faz com que o objetivo de ensinar todas as crianças seja alcançado”, opina Patrícia.  

Validação pela comunidade 

No intuito de que as crianças realmente pudessem entender a mensagem e que os familiares e profissionais de educação se sentissem à vontade para tratar da prevenção à violência, os materiais elaborados pelo “Eu Me Protejo” foram validados junto a famílias, educadores e integrantes de igrejas e órgãos de proteção à criança. A escuta foi feita por atores de diferentes classes sociais e regiões. “O fundamental do projeto foi validar [o conteúdo] com as pessoas e, principalmente, ouvir as crianças. Temos essa cultura de excluir a fala delas, mas fizemos com que participassem e respeitamos o que elas nos trouxeram”, conta Neusa. 

A psicóloga argumenta que esse processo de escuta quebrou o silêncio de muitos adultos para discutir o tema com as crianças. “O projeto fala sobre prevenção, apenas isso. Todo o material ensina às crianças as partes do corpo, principalmente as íntimas, com o devido nome e orienta quem e quando podem ser tocadas. Esse diálogo permite demonstrar que a nossa intenção é cuidar e proteger a criança.” 

De acordo com Patrícia, os materiais passaram por muitas versões até que chegassem ao lançamento oficial do projeto em março de 2020. Ela conta que esse esforço faz parte da premissa da Linguagem Simples. “Você tem de validar o conteúdo. Não adianta achar que está simples. A pessoa que vai ler é que tem de saber. Ir às comunidades permitiu ver se a mensagem estava clara e confortável. Por exemplo, uma mudança que implementamos foi a nomeação das partes do corpo, inclusive as íntimas, para que a criança possa entender do que estamos falando. Não podemos mascarar, senão os pequenos não entendem o que devem proteger.”  

Da mesma maneira, ela viu no DUA uma forma de ampliar o alcance do material, ao proporcionar diferentes formas de comunicação,  utilizar uma linguagem direta e ilustrações que mantêm a atenção do leitor.  

Para garantir a acessibilidade, o projeto disponibiliza os materiais com audiodescrição, tradução na Língua Brasileira de Sinais (Libras) e prancha de comunicação (recurso de comunicação alternativa que serve tanto para ensinar a pessoa como para ajudá-la a se expressar), além de versões em língua inglesa e espanhola. 

A prevenção na prática 

Os materiais do “Eu Me Protejo” já foram utilizados em diversos municípios e estados brasileiros e ganharam reconhecimento internacional. As fundadoras já divulgaram o projeto em eventos na Austrália, nos Estados Unidos, na Áustria e em uma conferência da Organização das Nações Unidas (ONU).  

O uso dos materiais em Santo Antônio do Descoberto, em Goiás, demonstra o potencial da proposta. Desde 2022, a metodologia está sendo aplicada na rede municipal de educação com apoio do Conselho Nacional de Justiça, da Rede Nacional da Primeira Infância (RNPI) e da Secretaria Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência (SNDPD).  

Foi por meio da coordenadora-geral da educação infantil, Andréa Melo, que o “Eu Me Protejo” chegou ao município. “Eu participei da oitava edição do Seminário do Marco Legal da Primeira Infância, em que a proposta foi apresentada. Por ser [elaborado] na perspectiva da educação para prevenção, trazer uma linguagem simples, acessível às crianças com ou sem deficiências, professoras e famílias, e ser inclusivo, e que iria nos ajudar a proteger as crianças da nossa cidade. Então acessei o site, mergulhei nos diferentes materiais e levei para minha equipe.”

No primeiro momento, Andréa usou os recursos de forma esporádica com crianças de três a cinco anos. O próprio departamento de educação infantil da secretaria municipal de educação imprimiu, recortou e plastificou os materiais para que as professoras pudessem trabalhar o tema com as crianças e as famílias. Com o tempo as professoras passaram a multiplicar estes materiais.

Em um momento seguinte, com a implementação do Pacto pela Primeira Infância no município, o Projeto foi apresentado à todas as autoridades da cidade e divulgado em rádio local e outdoor. Educadores e motoristas do transporte escolar da rede já participaram de formação continuada. Outra vitória é o fato de que os conteúdos do projeto passaram a integrar a parte diversificada curricular na educação infantil.

Para tornar a utilização dos materiais de forma sistêmica além da instituição de ensino, o Município vem trabalhando na ampliação da rede de apoio para dar continuidade após os relatos das crianças.

“Essa visibilidade e essa importância ganharam forma com a inclusão no currículo. O impacto é grande — realizamos formações para 600 famílias que têm filhos matriculados na educação infantil e profissionais de educação e do transporte escolar. Alcançamos mais de 2 mil crianças. Usamos todos os conteúdos para conscientizar e prevenir situações de violência”, complementa Andréa.  

 “O ‘Eu Me Protejo’ instrumentaliza a todos: ele permite que mães, pais, educadores e motoristas do transporte escolar ampliem seus conhecimentos para lidar com o tema. No caso dos profissionais de educação, quando estudamos o projeto, ficamos preparados para fazer o trabalho na linha de frente. Temos como criar estratégias, atividades e propostas que abordem a prevenção, seja com a música, o teatro de fantoches ou algum jogo.” 

A coordenadora aponta que o sucesso do projeto consiste em oferecer recursos que auxiliem professores na hora de abordar o tema. “Percebemos que os professores muitas vezes queriam falar sobre o tema, mas não tinham instrumentos eficazes e segurança o suficiente para isso. Com as orientações didáticas, é muito mais fácil de aprender e ensinar.”

Apesar de ter como foco a prevenção da violência sexual, a aplicação do projeto tem possibilitado que crianças explicitem situações pelas quais passaram ou estão passando. Os relatos espontâneos é uma realidade, por isso as idealizadoras da iniciativa desenvolveram um protocolo sobre como agir nessas situações.  

“No momento em que a criança relata a violência, a notificação tem de ser feita. Mas precisa haver um protocolo para preservá-la da exposição e tirá-la de perto do agressor. Da mesma forma, as pessoas da linha de frente que ouvem essas denúncias precisam de suporte psicológico, uma vez que não é fácil lidar com tudo isso.”   

A especialista reforça a importância de se ouvir a criança, observá-la e acreditar no que ela diz. “Por incrível que pareça para muitas pessoas, a violência sexual infantil geralmente acontece dentro do próprio lar e por alguém conhecido. Alguns casos que descobrimos depois da aplicação do “Eu Me Protejo” confirmam isso. É preciso que a criança possa falar em um lugar seguro, como a escola, e tenha sua versão recebida e investigada. Em nossos materiais, disponibilizamos um guia para as famílias no qual indicamos os canais oficiais de denúncia.”  

O que Neusa fala é ratificado pelos números de 2023 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública: 64% dos agressores das crianças de até 13 anos são familiares e 22,4% conhecidos da vítima. Em 64,7% dos casos contra pessoas vulneráveis, a violência acontece na própria residência da vítima. 

Andréa conta que ainda não há novos dados oficiais sobre o tema no município, mas acredita que as notificações aumentaram, por conta do total de crianças que vem fazendo relatos nas instituições que atendem educação infantil . Ao mesmo tempo, ela acredita que a existência do projeto na cidade tem o potencial de reduzir o número de ocorrências, pois os agressores sabem que a sociedade está mais atenta. “Os relatos e suas notificações nos ajudam a ter uma real noção do que acontece com nossos pequenos e colaboram para o desenho de políticas públicas para erradicar esse mal. Vimos que é importante colocar o dedo na ferida para, de fato, resolver o problema.” 

Como prevenir a violência sexual? 

O “Eu Me Protejo” estabelece os quatro eixos da prevenção à violência sexual. Veja a seguir como colocá-los em prática: 

  • Observe: 

O agressor observa a criança antes de cometer a violência, por isso é necessário que todos estejam sempre atentos aos comportamentos da criança e das pessoas ao seu redor. 

Também é preciso estar alerta a mudanças comportamentais, emocionais, fisiológicas e escoriações (arranhões, machucados), hematomas (manchas roxas), queixas de dores, interesse repentino de um adulto pela criança, negação da criança em ir com um adulto e atrasos no comportamento. 

  • Ensine:

Explique à criança como nomear as partes íntimas do corpo com os nomes corretos. Isso pode ser feito na hora do banho e de ir ao banheiro. É essencial indicar que ela tem pessoas de confiança, a quem ela pode pedir ajuda em alguma situação de perigo. 

Autoproteção, respeito ao próprio corpo e ao corpo do outro e autocuidado devem ser trabalhados pelas escolas e famílias. 

Fortaleça os vínculos de confiança e afetivos, fale sobre os tipos de violência e como evitá-las e ensine a dizer “não”. 

  • Oriente:

Peça à criança para gritar se alguém tocar em suas partes íntimas ou agredi-la, a pedir ajuda a alguém de confiança, a não cumprimentar adultos com beijos e abraços, a não tocar em estranhos ou não permitir que estranhos toquem nela. 

Ensine a criança a não acompanhar nenhum adulto sem a permissão dos responsáveis, a não receber presentes de estranhos, a não parar na rua para dar informações e a não guardar segredos. 

Deixe claro que a criança não será punida se algo acontecer. Converse com ela sobre seus sentimentos de culpa e medo e como enfrentá-los. 

Explique à criança que, aconteça o que acontecer, ela é só uma criança, não tem culpa e precisa ser cuidada e protegida. O adulto jamais deve duvidar da criança. 

  • Notifique:

A notificação é importante porque diminui a subnotificação, gerando dados para a implementação de políticas públicas que efetivem os três eixos citados anteriormente, evitando subnotificações e validando a garantia dos direitos. 

Uma suspeita já é motivo para notificação. 

A suspeita só é possível por meio do primeiro eixo, que é a observação. 

 

 

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