Para Eugênia Gonzaga, procuradora regional da República, as pautas dos movimentos sociais por direitos humanos precisam ter bandeiras em comum
Em entrevista ao DIVERSA para o Dia Nacional dos Direitos Humanos, a procuradora regional da República Eugênia Gonzaga fala sobre sua atuação como presidente da Comissão Especial dos Mortos e Desaparecidos Políticos por mais de uma década, sobre os desafios atuais da luta por direitos humanos e sobre a importância do trabalho em conjunto entre sociedade civil e poder público.
Para ela, os direitos humanos precisam ser transversais para que os mais diferentes grupos defendam um objetivo em comum. A procuradora ainda entende que coesão das pautas dos movimentos sociais está em torno da constituição brasileira de 1988 e que a luta pela capacidade civil é a bandeira do século 21.
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Confira a entrevista completa da procuradora ao DIVERSA:
DIVERSA – Como você vê a importância da atuação de Margarida Maria Alves para o Dia Nacional dos Direitos Humanos?
Eugênia – Reviver a história é realmente importante, bem como trazer à tona datas como a do Dia Nacional dos Direitos Humanos. A morte da Margarida é muito emblemática não só pelo fato de ser mulher, mas também pelo fato de ser camponesa. Ela morreu por sua caminhada pela democracia, pela realização dos direitos humanos.
Margarida não era uma pessoa típica daquela definição da ditadura sobre resistente político, ela não estava engajada em nenhum movimento contra a ditadura. A Comissão Nacional da Verdade trouxe essa questão à tona. Ela dá sinais, como ocorre com a Margarida, de que as vítimas da ditadura brasileira são inúmeras, não apenas aquelas que o governo brasileiro considerava como preso político. Ao incluir Margarida como vítima, a comissão deixou o caminho aberto para que sejam incluídos outros grupos.
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Acaba de completar um ano da sua exoneração da Comissão Nacional dos Mortos e Desaparecidos Políticos. Como você avalia esse período da comissão após a sua saída?
Não tem ação. A tentativa das pessoas que entraram foi cancelar a comissão. A tentativa é de criminalizar o pouco que a gente conseguiu fazer, porque eu considero que tudo é pouco perto do débito do país com essas pessoas e com essas famílias atingidas. Eles tentam criminalizar nossa função como advocacia administrativa, em prol das famílias de mortos e desaparecidos políticos. A gente vive com um governo com a necessidade de recontar essa história.
Eu estou muito preocupada. Nós temos restos mortais parados, restos biológicos que estão se desfazendo e vão perecer ao longo do tempo, ossos humanos que se não forem manuseados com a técnica correta podem inviabilizar qualquer tipo de identificação. Tudo isso está escrito em relatórios, mas tanto por parte do governo, como por parte do judiciário brasileiro, estamos vendo uma resistência muito grande em atuar nesse tema.
Tem mantido contato com as famílias?
Sim. Eu acho que o Ministério Público não existe sem a sociedade civil. No caso, quando eu comecei a minha atuação em prol de pessoas com deficiência, eu tinha o objetivo de ser como uma mãe: de conhecer e estar muito próxima às famílias. Então, eu sempre tive muito forte dentro de mim que, em qualquer atuação em direitos humanos, temos que conhecer exatamente o que as pessoas envolvidas sentiram e sentem na pele. Meu foco sempre foi ouvir as famílias. Errei exatamente quando não as ouvi e tenho essa percepção.
Como atuar com direitos humanos, levando em conta todo o contexto em que vivemos?
Está muito difícil atuar em direitos humanos atualmente. Nós estamos diante de um Ministério Público Federal nomeado pelo presidente da república que é contra a atuação em qualquer âmbito dos direitos humanos. Na questão das pessoas com deficiência, apoia desde que seja para fazer o que sempre fez no passado: guardar as pessoas nas instituições, dando dinheiro para as instituições de exclusão para não colocar nas escolas para não atrapalhar a turma.
E agora a coisa da covid-19 piora, porque você usa, por exemplo, a impossibilidade do surdo de usar a máscara para excluí-lo. Dá para pensar em soluções, mas é muito difícil ajudar.
No meu caso, estou me candidatando para substituição na Procuradoria Geral da República nos casos de habeas corpus criminais. Eu tenho essa possibilidade, no meu ponto de carreira. Eu venho falando de pessoas do Brasil inteiro que não conseguem uma revisão da sua sentença ou uma libertação da cadeia por conta da covid-19, eles acabam chegando no Superior Tribunal de Justiça e eu entro dando o parecer.
Qual a importância da atuação da sociedade civil em direitos humanos?
Queremos instituições que não escondam as pessoas, como é o caso das pessoas com deficiência. Queremos instituições que sejam ponte para que as pessoas consigam, da maneira que elas puderem, com apoio, e com capacidade. Então, somos parceiros de instituições que atuam dentro desse princípio. E todo mundo é bem-vindo, desde que tenham esses valores como linha de frente.
Eu tinha um professor que falava que para o Ministério Público sobra técnica, mas falta paixão. Ele não conhece a realidade de todos os temas que devem ser trabalhados. Para a sociedade civil, sobra paixão, mas falta técnica. Então, é um casamento perfeito: o ministério público e a sociedade civil. Temos que atuar em conjunto. Sei que é um trabalho difícil, que demanda escutar e ouvir muito. Temos sempre que ter muito firmes os valores constitucionais.
Em um artigo que você escreveu em 2017, intitulado “Deficiência e Legalidade”, você diz que “Entre as batalhas pelos direitos das minorias, a luta pela inclusão das pessoas com deficiência talvez seja a mais difícil das bandeiras civilizatórias”. Por que você tem esse entendimento?
Agora já temos uma bandeira mais difícil: que é a da capacidade civil das pessoas com deficiência. Não há essa união de bandeiras, porque não há o entendimento da bandeira do outro. Eu acho que isso não é um problema de ninguém especificamente, mas um problema de uma sociedade excludente, que sempre excluiu pessoas diferentes, então ninguém conviveu com ninguém.
Temos falado muito na transversalidade dos direitos humanos e, dentro dessa ideia, analisando várias lutas, a minha percepção é que a deficiência é ainda a mais delicada, a mais vulnerável nesse aspecto. Com a deficiência, existe a pecha da incapacidade. Isso dificulta muito.
A bandeira da inclusão educacional das pessoas com deficiência era uma das mais difíceis do século 20. E eu passo a dizer que a luta pela capacidade civil hoje é a luta do século 21, trazida pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, em 2006.
Você fala em uma luta pelo direito de escolha?
Sim. No Brasil, existe o falso paradoxo: ou essa pessoa decide que é incapaz de escolher (aí ela tem direito à interdição) e nada vai ser cobrado dela, como responsabilização em crimes, vai ter direito à pensão por morte dos pais, vai ser protegida.
Agora, se a pessoa se considera capaz, ela perde a proteção. E hoje a grande novidade dos juristas internacionais que trabalham com esse estudo sobre a Convenção da Organização das Nações Unidas é o seguinte: apoio não é incompatível com proteção. Você pode ter também um direito à pensão por morte e ter carteira assinada. Qual o problema?
Na cabeça dos juristas brasileiros, isso ainda é um nó. Pessoas, inclusive de vanguarda, têm uma dificuldade muito grande com isso. Estou falando bastante disso porque meu filho (com Síndrome de Down) tem 21 anos e está exatamente nessa fase. Ele está estudando, terminou o ensino médio, e está fazendo um curso de fotografia. Ele quer ter um trabalho digno, ele quer trabalhar, só que ele está com 21 e ainda não tem um salário. Se eu morrer amanhã, ele não vai ter direito à pensão por morte.
E se eu tivesse o interditado, com base no código civil antigo, ele teria tudo isso assegurado. É uma espada de dois gumes na cabeça dos pais, porque a legislação brasileira é muito equivocada nesse sentido.
Atualmente as pessoas com deficiência estão na escola e na sala comum. O que ainda falta ser alcançado em termos de aprendizagem e acesso à educação?
A Convenção foi uma coroação de um período. Acho que desde o início dos anos 2000, o número de matrículas em escolas comuns vem aumentando consideravelmente. Desde o final dos anos 90, os pais têm a ideia de que não vão aceitar outra escola para os filhos que não seja uma escola do bairro.
O que deve ser feito: a consciência incondicional de que a criança com deficiência é uma criança como qualquer outra e tem direito àquele ambiente e àquele espaço. Obviamente que a gente tem um ensino muito conservador, que não exclui só crianças com deficiência, mas crianças com o mínimo déficit de atenção. A escola está muito pautada na homogeneização e isso não é prejudicial apenas a crianças com deficiência. Ela precisa se abrir para receber qualquer criança!
Qual seu recado em relação aos Direitos Humanos de uma forma ampla?
Eu tenho muito carinho por essa data, por conta da sua origem (em memória à Margarida). Acho que fizemos uma feliz escolha, foi uma mulher que trabalhou por outras mulheres e por outras famílias e que foi resistente, como a Irmã Dores, e Dom Pedro Casaldáliga (que faleceu no último sábado). O que mostra como o Brasil é um país com figuras fantásticas e o Dia Nacional dos Direitos Humanos realmente precisa ser destinado a essas pessoas.
Eu nunca pensei que fosse atuar nessa área de desaparecidos políticos, até quando eu comecei na luta pelos direitos humanos tive muito foco nas pessoas com deficiência. Mas me sinto realmente honrada de ter essa visão mais plural dos direitos humanos. Eles precisam ser transversais, passando de um lado para o outro.
As vulnerabilidades são as mais amplas e as pessoas entendem muito pouco entre os públicos, não existe uma coesão nessa luta. Hoje em dia, a coesão ainda está em torno da Constituição de 88, que pode ter seus defeitos e equívocos, mas ela ainda é um grande documento no mundo inteiro, admirada. No Dia Nacional dos Direitos Humanos, eu acho que seria o nosso maior sonho se a gente conseguisse pelo menos cumprir o que está na Constituição.