Saúde e educação: atuando em rede para atender pessoas com deficiência

O modo como a sociedade percebe a deficiência é marcado pelo protagonismo da área da saúde na definição de espaços e de atividades “ideais” para as pessoas com deficiência. No mundo ocidental, antes do século XIX, esses indivíduos foram excluídos do convívio social. Tempos depois, passaram a ser acolhidos por um modelo de asilos, conduzido principalmente por representantes do cristianismo. As atividades realizadas nesses locais de confinamento destinavam-se à “salvação” e não havia nenhum propósito relacionado ao cuidado na perspectiva da saúde.

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É apenas no século XIX que esse cenário se reconfigura. Com o surgimento do conceito de doença, a deficiência passa a ser percebida como uma anomalia da natureza que deveria ser curada. Nesse contexto, o modelo de asilos foi alterado e as pessoas com deficiência passaram a ser o alvo de intervenções baseadas na noção de disciplina e controle. Surgiram as primeiras instituições de reabilitação, que tinham como proposta consertar ou adaptar o “corpo deficiente” para que ele pudesse ter possibilidades de participação em outros ambientes. Assim, a saúde legitimou o que hoje conhecemos como modelo da integração.

O termo reabilitação ainda existe, mas sua compreensão mudou. Atualmente, ele se relaciona à ampliação do acesso e da participação das pessoas com deficiência nos diversos espaços de vida, privados ou públicos. Apesar disso, muitas práticas continuam partindo do antigo entendimento conservador da palavra. Mesmo em ambientes fora do campo da saúde é comum a presença de profissionais da área para lidar com pessoas com deficiência ou organizar atividades para esse público.

A CIF e a mudança de paradigma

A atual estrutura das políticas e instrumentos da área da saúde concretizam essa mudança de conceito, que ocorreu em conjunto com outros campos e, principalmente, com o fortalecimento da compreensão da participação da pessoa com deficiência enquanto direito humano.

Nesse cenário apresenta-se a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF). Trata-se de um instrumento complementar à Classificação Internacional de Doenças (CID). A CIF parte da premissa de que a interação entre diversos fatores, tanto de ordem estrutural e funcional do corpo quanto de ordem pessoal e ambiental, pode gerar barreiras ou facilitadores para a plena participação das pessoas com deficiência na sociedade.

Por ser uma categorização, a CIF expõe um cenário previamente avaliado. Contudo, indica a necessidade de que essa avaliação seja configurada de maneira a envolver ambientes e pessoas fora do campo da saúde, já que demanda a leitura de aspectos ambientais e pessoais que se associam a elementos relacionados à estrutura e função do corpo. Isso incita o diálogo entre as áreas.

A saúde e a atuação em rede

É importante considerar que essa troca entre as áreas deve ser realizada de maneira horizontal, pois no diagrama da CIF não há uma linearidade que relaciona a limitação na atividade como consequência da estrutura ou da função corporal. Ou seja, não há um peso maior entre um ou outro fator.

A própria construção de uma classificação com essas características retrata as mudanças no entendimento da deficiência e mesmo na caracterização de suas intervenções. Assim, a proposta de reabilitação se compõe pelo desenvolvimento de capacidade funcional somada à diminuição de barreiras e envolve o olhar e participação de atores que circulam por todos espaços sociais, com a contribuição de conhecimentos, sejam ele técnicos ou não, como é comum no ambiente domiciliar.

Os serviços de atenção especializada em saúde foram se destituindo da função de realizar o cuidado absoluto das pessoas com deficiência e suas ações passaram a se estruturar na proposta de atuação intersetorial, com a educação, a assistência social, o esporte, a cultura, entre outros. As unidades de atenção especializada em saúde têm hoje como diretriz estabelecer relações junto a toda esta estrutura para qualificar o atendimento da pessoa com deficiência. Assim, fica cada vez mais fortalecida a compreensão de que a intervenção para a ampliação da participação plena e com autonomia da pessoa com deficiência não se faz e não é dirigida exclusivamente pelos espaços especializados.

Toda mudança se realiza de maneira processual e dinâmica, com elementos macroestruturantes, mas também com as posturas e gestos micropolíticos que fazem parte do cotidiano de cada um de nós. A proposta de interação entre as áreas que atuam junto às pessoas com deficiência já se mostra em seus documentos, diretrizes e instrumentos técnicos, porém a construção desse diálogo é também tarefa a ser desenvolvida por todos nós.

Para mais informações sobre o papel da escola no atendimento a estudantes com transtorno do espectro autista (TEA) leia o artigo “O efeito do diagnóstico sobre o olhar da escola”.

 

Nadja Fialho é graduada em Terapia Ocupacional pela Universidade de São Paulo (USP) e tem especialização em Gestão em Saúde pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Possui experiência com práticas interdisciplinares nas áreas da saúde mental e saúde da pessoa com deficiência na atenção básica e na atenção especializada.

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