Por que falar sobre formação de surdos é falar de uma educação para todos

O tema da redação do Exame nacional do ensino médio (ENEM) 2017, “Desafios para a formação educacional de surdos no Brasil”, foi recebido de diferentes maneiras. Muitas pessoas que fizeram a avaliação, dentre elas seis mil com deficiência auditiva, ou que acompanharam as notícias na mídia argumentaram que a abordagem foi importante, pois deu visibilidade a um assunto ainda bastante pontual.

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Outros, por sua vez, consideraram a proposta específica demais. Houve quem argumentasse que o foco do debate deveria ser a educação inclusiva como um todo; que essa questão deveria ser pensada por educadores e pelo Estado, e não por estudantes do ensino médio; e que é muito difícil falar desse tópico quando não se convive com pessoas com deficiência. Tais ponderações mostram, justamente, como a prova conseguiu mobilizar um debate necessário e, provavelmente devido a sua escassez, envolto por mitos.

Educação para todos

Em primeiro lugar, é importante entender a educação inclusiva, simultaneamente, como um modelo de ensino e como um tema transversal, cujas perspectivas e estratégias beneficiam não só os alunos com deficiência. Ou seja, falar da educação para surdos e/ou para pessoas com deficiência está relacionado a pensar uma educação que seja, de fato, para todos.

“As pessoas têm necessidades e características específicas e as diferenças são intrínsecas aos seres humanos. Nesse sentido, quando faço explicações de forma pausada, com o rosto voltado para os estudantes e uso mais imagens e materiais táteis para ensinar conceitos abstratos da matemática, por exemplo, não só ajudo na fixação do conteúdo pelos alunos surdos, com deficiência visual ou intelectual, mas também ajudo todos aqueles que têm tempos diferentes para compreender e memorizar determinados conceitos”, diz Aline Santos, coordenadora do projeto DIVERSA.

Outro ponto importante é que mesmo quando não convivemos com pessoas com deficiência temos de pensar sobre elas, justamente para que possamos tornar os ambientes receptivos e interativos para todas as pessoas. Antes de nos perguntarmos “como pensar nas necessidades desse público, se não convivemos com ele?”, devemos questionar: “por que não convivemos com pessoas com deficiência sendo que, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), elas representam 15% da população mundial?”.

A invisibilidade das pessoas com deficiência

A inversão de raciocínio nos permite perceber que ocorre, na verdade, uma invisibilização. Para além de destacar a necessidade e a importância de políticas públicas promovidas pelo Estado para reverter esse cenário, tal perspectiva aponta para a responsabilidade atitudinal de todos os atores sociais nesse processo.

Vale lembrarmos que a deficiência é resultante de uma combinação de dois fatores: as particularidades de uma pessoa e as barreiras existentes na sociedade. A definição consta na Convenção dos direitos das pessoas com deficiência, publicada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2006. Segundo o texto, “não é o limite individual que determina a deficiência, mas sim as barreiras existentes nos espaços, no meio físico, no transporte, na informação, na comunicação e nos serviços” e nas atitudes dos sujeitos, acrescentaríamos.

A eliminação desses impedimentos “é condição indispensável para que se promova a equiparação de oportunidades e a igualdade de direitos”, como diz Rodrigo Hübner Mendes, superintendente do Instituto Rodrigo Mendes (IRM). Então, para derrubar e superar tais barreiras é necessário identificá-las. Assim, torna-se importante perceber como elas se apresentam de diferentes formas a pessoas com deficiências e personalidades distintas.

Os surdos, por exemplo, têm a comunicação como barreira e desafio central para serem plenamente incluídos nos espaços de sociabilidade e interação entre si e com os ouvintes. Estes últimos, portanto, devem se ater à oralidade como barreira específica a ser superada para a inclusão de estudantes com deficiência auditiva na educação. E essa é uma responsabilidade atitudinal que precisa ocorrer frente a todas as demais especificidades das deficiências.

O aumento do acesso à educação básica

Quando pensamos sobre o aumento da entrada de estudantes com deficiência no sistema de ensino brasileiro nos últimos anos, torna-se ainda mais evidente que o tema de redação proposto pelo ENEM 2017 é uma questão para o agora. Segundo dados do Censo Escolar, o número de matrículas de pessoas com deficiência na educação básica cresceu 38% de 2010 a 2016. Nesse contexto, chama atenção a queda de 20% das matrículas em escolas ou classes especiais – aquelas destinadas exclusivamente a alunos com deficiência.

Ao mesmo tempo, o acesso a ambientes inclusivos, ou seja, aqueles onde estudantes com e sem deficiência convivem e aprendem juntos, aumentou 64%. Essa tendência se manteve entre pessoas surdas ou com deficiência auditiva: em seis anos, as matrículas desse público em salas de aula segregadas diminuíram 51%.

Os números evidenciam as transformações das políticas públicas e das práticas de educação que têm ocorrido no Brasil e no mundo nas últimas décadas. Em 2008, inspirado na Convenção da ONU, que tem status de emenda constitucional no país, o Ministério da Educação (MEC) lançou a Política nacional de educação especial na perspectiva da educação inclusiva, cuja orientação para que a matrícula aconteça preferencialmente nas escolas comuns abriu caminho sem precedentes para a inclusão de crianças e adolescentes com deficiência.

Apesar dos avanços, que têm permitido cada vez mais o convívio entre pessoas com e sem deficiência nas escolas, mesmo em 2016, quando o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) registrou o maior número de alunos público-alvo da educação especial desde o início das medições, a taxa não chegava a 2% do total de matrículas na educação básica. Como já destacado, a estimativa da OMS é de que 15% da população mundial tenha alguma deficiência. Ou seja, ainda que cada vez mais pessoas com deficiência estejam chegando ao sistema de educação, uma parcela significativa delas permanece fora da escola. Para reverter o histórico de invisibilidade e exclusão, é preciso que muitas mais crianças e adolescentes com deficiência cheguem às redes de ensino nos próximos anos.

O desafio da permanência

No dia a dia das escolas, a presença do aluno surdo – ou com deficiência no geral – tem escancarado as limitações de um sistema de ensino que pode até estar de portas abertas, mas que não oferece garantias de que elas não voltarão a se fechar. No último ano, por exemplo, cerca de 710.000 crianças com deficiência foram matriculadas no primeiro ciclo do ensino fundamental. Nas séries seguintes, os números caem significativamente, registrando 248.000 matrículas nos anos finais da etapa e somente 75.000 no ensino médio.

As estatísticas apontam que a permanência desse público no sistema formal de educação ainda é frágil. Desencorajadas e desacreditadas, muitas crianças e adolescentes com deficiência abandonam os estudos, o que suscita outras preocupações: qual é a qualidade da educação que recebem? Eles apenas ocupam seus espaços em sala de aula, ou de fato aprendem e participam do cotidiano escolar?

O cenário mostra que os desafios são complexos. A boa notícia é que práticas exemplares de inclusão multiplicam-se pelo país, sobretudo na rede pública, onde a chegada dos estudantes com deficiência tem inquietado e estimulado educadores e gestores há mais de dez anos. A escola Clarisse Fecury, em Rio Branco (AC), faz parte dessa história. Após receber seus primeiros alunos com deficiência auditiva, em 2006, a instituição passou a oferecer oficinas de Língua brasileira de sinais (Libras) para todos. Com isso, estudantes ouvintes e surdos puderam ter condições reais de socializar e se desenvolver. Uma ideia simples, nascida da mudança atitudinal proporcionada pelo convívio.

Diversidade da comunidade surda

As discussões sobre invisibilidade, acesso, presença e permanência de alunos com deficiência na rede regular provocam uma reflexão ainda maior sobre o modelo de educação. E retomando a proposta de redação do ENEM, é necessário considerar a diversidade de estudantes com e sem deficiência.

Quando falamos em desafios para educação de surdos especificamente, não podemos desconsiderar a diversidade dentro da própria deficiência: há quem faça uso da Libras, há quem faça leitura labial e ainda há aqueles que recorrem aos implantes e aparelhos auditivos. Portanto, estratégias pedagógicas “que atendam a alunos surdos” não fazem sentido se não conhecermos esses estudantes.

A motivação – e o desafio – reside, então, em estruturar metodologias, recursos e materiais que considerem ritmos, formas e estímulos diferentes para aprender.  Essa perspectiva nos possibilita pensar em uma educação democrática e participativa para todas e todos em contrapartida às propostas hegemônicas de ensino e avaliação.

Exemplo disso aconteceu na escola indígena José do Carmo Santana, no município de Cacoal (RO). Os Paiter Surui, povo indígena da região, não contam com um alfabeto manual. Então, para a comunicação com crianças e adolescentes surdos, cada família cria uma linguagem gestual própria. Com a intenção de garantir a efetiva participação nas aulas de dois garotos Paiter Sucuri com deficiência auditiva que não usam a Libras, o professor de geografia Luiz Weymilawa aprendeu os sinais específicos usados por esses alunos, aproximando-se de amigos e familiares dos estudantes.

Projeto de inclusão ou projeto inclusivo?

 

Por fim, não se pode ignorar a importância da formação de professores para o trabalho com a inclusão. No que tange essa particularidade, podemos entender o problema a partir de duas perspectivas. A primeira diz respeito à ausência de pessoas com deficiência no ensino superior (apenas 0,4% de matrículas).

Depois, precisamos considerar também a formação que os alunos de pedagogia e licenciaturas recebem. Um levantamento feito em 2013, por exemplo, mostra que apenas 7 das 59 universidades federais oferecem o curso de graduação em Libras. Essa lacuna no preparo de educadores alimenta uma falha grave no processo de inclusão de estudantes no ensino básico e, assim, o ciclo se retroalimenta. O caminho vicioso nos permite pensar que a representatividade de educadores com deficiência se profissionalizando em faculdades e universidades é importante para promover a inclusão na educação básica.

Embora a formação de professores e educadores seja um fator crucial, é preciso ter em mente que o maior preparo vem do exercício cotidiano ao refletir e ressignificar estratégias e abordagens, de forma a contemplar o maior número de estudantes e suas respectivas particularidades. Afinal, em última instância, a inclusão é um conceito transversal e estrutural.

A educação inclusiva não pode e não deve ser vista como um “projeto” dentro da rede de ensino ou escola. Ela é uma concepção e se reflete em como todos outros aspectos se estruturam, incluindo a formação de professores e as formas de avaliação. Mas, principalmente evidencia que, para trabalharmos em uma perspectiva de educação voltada à todas e todos, devemos colocar o estudante no centro do processo de ensino-aprendizagem, como foco, sujeito ativo e desencadeador desse percurso.

 

Alexandre Moreira é licenciado em educomunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), fundador e colunista no Portal Caneca e atua na área de formação do Instituto Rodrigo Mendes (IRM).

Isabela Morais é jornalista graduada pela ECA-USP e redatora do projeto DIVERSA.

Mariana Queen é mestre em meios e processos audiovisuais e jornalista graduada pela ECA-USP. É analista de comunicação do IRM.

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