Teclado criado por jovens fortalece a escrita de línguas indígenas
Ferramenta tem caracteres especiais para registrar a escrita em 36 línguas indígenas. Possibilidade de produção de materiais diversos pode contribuir para preservação da cultura de povos de diferentes regiões e ajudar a enfrentar a barreira da comunicação
“É a partir da língua que a gente pensa e existe. Mas ainda há um desprezo pelos indígenas que somos, o modo como falamos e nossas músicas e pinturas corporais. Isso gera diversas violências e causa baixa autoestima. Mas quando resgatamos nossa língua, o pensamento se modifica”, diz Vanda Witoto. O povo indígena ao qual ela pertence fala quatro línguas, e apenas 300 pessoas ainda vivem em seu território, na fronteira entre o Brasil, a Colômbia e o Peru, distante seis dias de barco de Manaus, capital do Amazonas. Vanda não fala fluentemente a bue, língua de sua avó, mas pesquisa essa língua em seu trabalho de conclusão de curso da Faculdade de Pedagogia. Ela conta: “Eu sei canções em minha língua, mas não falo tão bem porque fui alfabetizada em português. As antigas gerações foram proibidas de usar a língua ancestral, mas a partir da minha formação e educação, luto para fortalecê-la”.
Uma tecnologia criada em 2022 pode apoiar o fortalecimento dessa e de outras línguas e ajudar a enfrentar a barreira da comunicação. É o Linklado, teclado digital que permite a escrita em 36 línguas indígenas de quatro regiões do Brasil, além de Peru, Bolívia, Colômbia e Venezuela. Com essa novidade, mais de 205 mil pessoas podem fazer registros no celular e no computador, complementando o teclado convencional. “Agora os indígenas podem usar suas línguas para comunicação no cotidiano ou para marcar presença em outros ambientes, como o acadêmico, o político e o escolar. Ainda temos um grande desafio, que é a inclusão digital [desses povos], mas um passo importante foi dado”, diz Noemia Kazue Ishikawa, pesquisadora especialista em fungos no Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (Inpa) e idealizadora da ferramenta.
Retomar a língua, criar tecnologia e incluir povos
As ameaças contra a língua e a cultura dos povos indígenas vêm de séculos. E os falantes de línguas indígenas brasileiras (foram 274 as registradas no Censo Demográfico de 2010) não encontram no celular ou no computador diacríticos (sinais gráficos que distinguem a pronúncia de palavras) ou caracteres apropriados para sua escrita. Em algumas línguas, há letras que necessitam de dupla acentuação, por exemplo — algo que não é possível de se fazer com a versão tradicional de teclados em português. Isso faz com que precisem usar a língua portuguesa ou adaptar palavras com outros símbolos. “Não dar o direito de os indígenas escreverem na própria língua de forma correta é mais uma violência que praticamos contra esses povos”, diz Noemia. Ela nota que muitos dos seus estudantes indígenas de pós-graduação não conseguem se expressar por escrito em suas línguas de origem.
Além disso, a pesquisadora sentia falta de poder divulgar os resultados de seu trabalho científico diretamente na língua daqueles que são fonte de informação para ela; ela usava apenas a língua portuguesa. “Não quero ser a cientista que colhe os conhecimentos que têm e depois não retorna com informação para as comunidades com as quais atua, escrevendo apenas em português e inglês. Essa forma de fazer ciência, dialogando só para fora da Amazônia, ficou no século passado.”
Noemia também vê a importância de aumentar o número de leitores indígenas, mas aponta que faltam livros nas suas línguas e não havia teclado adequado para elaborar os materiais. Para resolver essas dificuldades, ela procurou tecnologia e quem sabe trabalhar com ela. E deu certo: foram dois jovens formandos do ensino médio que criaram o Linklado, projeto que foi finalista do Prêmio Jabuti 2023, na categoria Fomento à Leitura.
Acesse a reportagem na língua tikuna
Criação da tecnologia, novos livros, novas possibilidades
A dupla que criou o Linklado a pedido de Noemia é Samuel Minev Benzecry e Juliano Portela, ambos nascidos e criados em Manaus e, na época, com 17 anos. Hoje, os jovens cursam a universidade nos Estados Unidos. Sem apoio governamental ou privado, eles primeiro desenvolveram o teclado para as línguas dos povos Tukano e Bonano (que vivem no Amazonas, na região do alto Rio Negro), depois ampliaram para Ticuna (a língua indígena mais falada no Brasil, com mais de 20 mil falantes) e para os diversos dialetos Yanomami, além de Kaiagang e Nheengatu (primeira língua indígena em que foi publicada a Constituição Federal, em 2023). Samuel conta que até agora foram feitos seis mil downloads do aplicativo, disponível nos sistemas operacionais Android e iOS.
O uso do Linklado está crescendo — mesmo com pouca conexão à internet e o distanciamento dos indígenas da tecnologia — e já é possível ver seus benefícios. Vanda, por exemplo, é professora voluntária de uma turma multisseriada com estudantes de nove etnias, com idades entre quatro e 12 anos, no Parque das Tribos, bairro de povos indígenas em Manaus. Lá vivem 35 etnias que falam 14 línguas diferentes, e Vanda realiza diversas atividades com as crianças, como caminhar na mata, entrar no igarapé, fazer pinturas corporais e se relacionar com a terra e o ar.
Ela tem preparado materiais didáticos em sua língua com o Linklado e vê diferenças: “Por exemplo, nós usávamos o sinal de ‘mais’ para substituir o ‘i’ taxado, mas isso era um remendo e deixava a palavra muito feia. Agora conseguimos escrever com as letras corretas, o que garante o sentido”, diz.
Noemia, por sua vez, coordena pelo Inpa o Linkladas, projeto que criou uma rede de mulheres indígenas tradutoras. Uma das profissionais é Cristina Quirino Mariano, a Cris Tikuna, que nasceu em Belém do Solimões, no extremo oeste do Amazonas, e aprendeu a língua portuguesa com 18 anos. Assim como Vanda, ela também mora no Parque das Tribos, em Manaus. Cristina está cursando a faculdade de farmácia e, entre os cuidados com o filho e o trabalho como atendente em uma farmácia, faz traduções para sua língua, Tikuna. Ela foi a responsável por transformar o livro “Embaúba: uma árvore e muitas vidas”, escrito por Noemia, em “Omawa wü’i i̇ na’i̇ ̃ rü mu’ü ̃ma i ma’ü ̃ni’i̇g̃ ü”. “Muitos indígenas não entendem o português, então precisam que os textos estejam em suas línguas”, diz. Ensinar para o filho a língua de sua família tem ainda outro significado: “Para mim, é importante que meu filho saiba o Tikuna para ele saber de onde veio”, explica.
Se no ensino superior, no qual Noemia atua, a escrita de textos acadêmicos e o diálogo sobre ciência com as comunidades indígenas já começa a tomar espaço, na educação básica ainda há muito o que fazer. Todos os entrevistados enfatizam que há poucos materiais literários e didáticos para crianças e jovens que sejam escritos nas línguas indígenas e com os caracteres adequados. “Muitas escolas indígenas têm apenas a Bíblia e a gramática escritas em sua língua, mas não outros materiais ou obras literárias”, afirma Samuel.
A baixa inclusão digital — tanto pela falta de equipamentos quanto de conexão com a internet — influenciam esse cenário. “Todos querem ter acesso à tecnologia. Mas, para isso, os indígenas precisam de equipamentos com os quais consigam se expressar corretamente”, diz Noemia.
Com o teclado disponível gratuitamente para download e com a existência de grupos como o Linkladas, a expectativa é que mais livros e materiais pedagógicos em línguas indígenas cheguem às escolas. Isso é importante para valorizar a identidade e a cultura indígena, o que fortalece a efetivação de uma educação realmente inclusiva.
Samuel acredita que as línguas são um “tesouro a se orgulhar”, e diz: “Com a perda das línguas indígenas, perdemos também culturas tradicionais e ricas que podem, inclusive, nos ajudar a enfrentar os desafios atuais e futuros, como em relação a mudanças climáticas e perda de biodiversidade”, diz.