Anos após Escola Donícia Maria da Costa ter sido objeto de estudo de caso, gestão continua proposta inclusiva para eliminar barreiras à educação de todas e todos
Em seu primeiro ano na direção da Escola Municipal Donícia Maria da Costa, localizada em Florianópolis (SC), Angelita Tenfen Wiggers encarou a pandemia com a ajuda de toda a comunidade escolar. A gestora se orgulha da perspectiva de trabalho colaborativo iniciado há anos na unidade, que está presente até hoje e existe para que ninguém fique para trás: “No começo do ano, sempre dizemos ‘bem-vindos à família Donícia’, porque é isso que nós somos”.
Em 2016, a escola fez parte de um estudo de caso sobre educação inclusiva realizado pelo DIVERSA. O trabalho foi publicado recentemente no livro Educação Inclusiva na Prática, realizado pelo Instituto Rodrigo Mendes em parceria com Editora Moderna e Fundação Santillana.
A direção e a equipe responsável pela sala multimeios da unidade demonstraram que o que já era positivo na época do estudo se fortaleceu com o tempo. Com quase 600 estudantes matriculados, sendo cerca de 16 crianças com deficiência, a escola municipal proporciona um ambiente de ensinos e aprendizagens benéfico não somente às crianças, mas também ao corpo docente e à comunidade do entorno.
A comunidade Donícia
Andreia Ferrão, professora do Atendimento Educacional Especializado (AEE), e Angelita já faziam parte do corpo docente em 2016, e garantem que parceria, respeito às singularidades, resiliência e persistência têm sido as bases de uma educação inclusiva e de qualidade a todos os estudantes da Donícia Maria.
A escola, criada no final da década de 80 no bairro Saco Grande, foi realocada em um prédio maior no início dos anos 2000. O intuito era deixar a unidade mais acessível à população residente de moradias populares na Vila Cachoeira, bairro vizinho.
Dispondo de sala multimeios, a instituição é uma “escola polo”. Oferece atendimento educacional especializado aos estudantes público-alvo da educação especial, tanto da própria instituição, como também de outras unidades da rede que não possuem esses recursos.
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Além dos equipamentos da sala multimeios, Andreia conta que, para garantir uma educação de qualidade a todos, também se desenvolveram colegiados abrangendo o entorno, o corpo docente e os estudantes. Isso permite que a comunidade escolar como um todo participe das tomadas de decisão. Ela comenta que alguns educadores que mudam de escola acabam voltando à unidade por conta dessa estrutura:
Nenhuma escola tem o perfil acolhedor que a nossa tem. A Donícia se construiu assim e se fez como modelo. A escola não só acolhe, como fortalece e forma líderes. E mostramos que a inclusão realmente está acontecendo.
De acordo com Angelita, a unidade atende muitas crianças e jovens em situação de vulnerabilidade social. Por isso, trabalhar a gestão democrática, valorizando o coletivo e com uma perspectiva de acolhimento, é um dos critérios da escola.
Cada criança é única
A diretora explica que todos que chegam na escola (profissionais, responsáveis e estudantes) passam por uma ambientação para entender a forma como as coisas funcionam por lá. Assim, se nunca tiveram contato com a educação inclusiva, passam a conhecer a modalidade para também se tornarem agentes ativos na garantia do acesso a aprendizagem, um direito de todas e todos.
Contudo, segundo Angelita, isso também é um processo: “Nem todo mundo abraça a educação que a gente idealiza”. Alguns docentes se mostram relutantes em trabalhar com crianças com e sem deficiência juntas, alegando que não têm o conhecimento necessário para tal. Esse tipo de situação é contornado com a explicação de que toda criança tem suas especificidades e é única, como explica Andreia:
“O principal é saber quem é essa criança, não o que ela tem. De onde ela vem; a que família ela pertence; se tem irmãos, se não tem; que referências ela tem.”
Barreiras causadas pelo preconceito
Quando o estudo de caso foi realizado, educadoras da unidade citaram o desenvolvimento de trabalhos para conscientização sobre os impactos negativos do bullying. Atualmente, a equipe pedagógica procura trabalhar essa questão diariamente, mas Andreia declara que ainda é uma barreira a ser eliminada:
“Não conseguimos vencer isso ainda, mas melhoramos bastante”, avalia. Os professores são atentos a essa realidade e, caso haja necessidade, realizam ações para desenvolver empatia e respeito às diferenças. “Na Donícia, nós trabalhamos justamente para mostrar que ninguém é igual a ninguém”, explica.
Betina Weber de Souza, professora de AEE e parceira de Andreia na sala de recursos multifuncionais, completa: “Só vamos conseguir eliminar algumas barreiras, não só na educação, mas na vida como um todo, quando nos despirmos de certos preconceitos”.
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Educação na pandemia
Durante a pandemia da covid-19, a equipe pedagógica precisou repensar as práticas para atingir todos os alunos, e isso foi feito em conjunto, como explica Andreia: “O trabalho colaborativo nos possibilitou uma qualificação nas atividades adaptadas para cada estudante, de acordo com suas realidades, o que foi uma grande preocupação nesse período.”
A proximidade com as famílias também foi um dos pontos positivos da situação imposta pela pandemia. De acordo com Angelita, pais, mães e responsáveis estiveram presentes dando apoio nesse período: “Posso dizer com certeza que os laços foram estreitados, e muito, nesse último ano. Espero ter um reflexo cada vez melhor dessas parcerias, se não a gente não sabe como vai caminhar de fato.”
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Estratégias para o ensino remoto
As estratégias que seriam aplicadas durante o fechamento da escola foram alinhadas entre educadores e gestão. Dessa forma, descobriram juntos o melhor jeito de organizar o ensino remoto e manter um contato próximo com as crianças e suas famílias.
Inicialmente, as atividades foram em forma de vídeos simples, com a inclusão de movimento de pinça e braile. No entanto, a estratégia não alcançava a todos.
Dessa forma, diante uma reorganização do trabalho, a escola deixou uma professora auxiliar responsável para cada duas disciplinas. Elas escolheram as áreas e auxiliaram na produção dos materiais para os estudantes da turma.
Segundo Betina, os materiais construídos foram adaptados seguindo as especificidades de cada estudante, com ou sem deficiência. Isso gerou muitas experiências positivas. Semanalmente, os educadores eram acompanhados para tirar dúvidas e receberem orientações, por meio de reuniões. “O tempo de diálogo entre os professores de articulação aumentou muito e também a qualidade dos materiais”, completa Andreia.
Para ela, o ensino remoto remodelou a escola, apresentando outras possibilidades de ensinar, deixando mais evidente a necessidade de verificar a realidade de cada aluno, como checar quem tinha acesso à internet e a outros recursos básicos.
A educadora também destaca a importância de o processo de ensino-aprendizagem respeitar o tempo de cada um:
Este ano serviu para olharmos para nós mesmos e entendermos que o ‘meu tempo é diferente do seu’. Inclusão é justamente entender o outro e respeitá-lo.
Não ao retrocesso
Em relação aos avanços ainda necessários no contexto de garantir uma educação verdadeiramente inclusiva no sistema de ensino brasileiro, Andreia declara que as lutas pelos direitos das pessoas com deficiência devem permanecer firmes e lamenta o Decreto nº 10.502, sobre a nova Política de Educação Especial. O decreto foi temporariamente suspenso em 1º de dezembro.
“Estou há 32 anos na educação e é com nó na garganta que vejo tudo isso acontecer… São lutas que desabam, se desestruturam. Se nós vamos melhorar, acredito que são com essas lutas. Quem tem a ganhar é a criança que está na escola regular.”
Em consonância, Betina aponta que o mais importante é qualificar o que já existe e está dando certo, ao invés de retroceder: “É necessário melhorar toda a sociedade e não só a escola. Quando começarmos a pensar isso e tiver governantes que pensem assim, vai começar a melhorar o que não está bom.”