Inteligências: você consegue me ver professor?

Somos herdeiros de uma formação que prioriza a capacitação técnica e a hierarquização dos saberes e das pessoas. Somos muitas vezes insensíveis ao outro em sua condição humana. Somos todos, ao mesmo tempo e de alguma forma, reféns de uma invisibilidade violenta. Tal qual somos vítimas de uma rotulação frequente.

E você? Alguém já te chamou de inteligente? Talentoso? Capaz? Chamou de inteligente por qual motivo? Tua fala eloquente, tua escrita certeira, teu gesto sutil naquele giro de dança ou pelo incrível gol que você marcou na partida de futebol? Talvez tenham ressaltado a sua prontidão em dar respostas certas ou a sua capacidade de memorização? Talvez nunca tenha ouvido que é inteligente. Mas qual a sua compreensão sobre ser inteligente? Nascemos ou nos tornamos? O que cabe a escola e aos professores?

Historicamente, valorizamos de sobremaneira o conhecimento simbólico e cognitivo, mantivemos a divisão corpo-mente, a dualidade entre emoção e razão, fortalecendo assim a ideia cartesiana do corpo-objeto-físico separado do sujeito-pensante-racional. Em decorrência desta compreensão, o modelo tradicional de ensino nas salas de aula privilegiou a imobilidade corporal e estigmatizou a aprendizagem como algo que acontece dentro da cabeça e se expressa na escrita ou na oralidade. Todas as outras múltiplas inteligências humanas, descritas por Gardner (1994,1995,1996, 1999, 2000), ainda ficam silenciadas e ocupam discretos espaços na escola, sem que sejam vistas por algum professor ou pelo próprio estudante.

Há pessoas com dificuldades de escrever que são reprovadas sem fazer uma prova oral. Há questões riscadas como erradas por professores nas correções de provas, porque o estudante confundiu o nome do conceito. Mas ele guardou algo, não guardou? Aprendeu, não aprendeu? E se tivesse a chance de voltar a estudar e refazer a prova? Poderia mostrar que aprendeu, não poderia? Damos esta nova chance?

Qual o lugar da Educação Física neste contexto? Nossos movimentos são inteligentes? Ou nossa gestualidade apenas diz que somos ágeis e que temos o dom da excussão técnica? Quantos estudantes nunca tentaram aprender a jogar, porque foram levados a pensar que nasceram sem coordenação? E os professores de Educação Física, como são vistos? São considerados inteligentes ou a “contaminação” da cultura da racionalidade nos faz atribuir inteligência apenas aos professores de outras disciplinas e nunca demos conta da seriedade deste estigma?

Segundo Mariotti (2000, p. 296) “Saber ver é antes de mais nada saber ver os nossos semelhantes”. Estamos nós professores acostumados a unidimensionalidade, a um modo único de perceber a inteligência e aprendizagem humana. Como ver a inteligência nas mais diversas formas?

No doutorado (ZYLBERBERG, 2007) defendi a necessidade de aprendermos a ver “possibilidades” da inteligência. Entendo que seja importante fomentar e criar oportunidades para romper o distanciamento entre professores e estudantes, não para que sejam amigos íntimos, mas para se aproximem a tal ponto, que se tornem visíveis um ao outro. Visíveis em sua singularidade, nas formas mais sutis e diversas de expressão. Para que juntos encontrem soluções ao silêncio, seja da folha em branco, da inicial timidez para uma apresentação em classe ou do gesto criativo que precisa fluir.

O olhar tem que ver a inteligência além do estabelecido. Ser inteligente é uma condição humana, ela não simplesmente sobra em uns e falta em outros. A inteligência é plural e diversa. Diverso precisa ser o nosso olhar para poder ver a singularidade dos estudantes, em cada um deles e em todos.

Ano novo. Início de semestre. Você assumiu uma nova turma. Os estudantes estão diante de você. Antes de perguntar seus nomes, preste atenção nos sinais, talvez um deles, esteja te perguntando: Você pode me ver professor? Pode me ajudar a ver quem eu sou?

Convite para outras leituras

DAMÁSIO, A. R. O erro de Descartes: emoção, razão e cérebro humano. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

Duarte Júnior, J. F. O sentido dos sentidos: a educação do sensível. 2000. 234f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2000.

EGAN, K. A mente educada: os males da educação e a ineficiência educacional das escolas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

GARDNER, H. Estruturas da mente: a teoria das inteligências múltiplas. Porto Alegre: Artes Médicas,1994a.

______. A criança pré-escolar: como pensa e como a escola pode ensiná-la. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994b.

______. Inteligências múltiplas: a teoria na prática. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.

______. A nova ciência da mente: uma história da revolução cognitiva. São Paulo: Edusp, 1996.

______. Inteligência: múltiplas perspectivas. Porto Alegre: Artmed, 1998.

______. O verdadeiro, o belo e o bom: princípios educacionais para uma nova educação. Rio de Janeiro: Objetiva, 1999.

GARDNER, H. Inteligência: um conceito reformulado. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.

LE BRETON, D. Adeus ao corpo. In: NOVAES, A. (Org.). O homem-máquina: a ciência manipula o corpo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p.123-138.

MARIOTTI, Humberto. As paixões do ego: complexidade, política e solidariedade. São Paulo: Palas Athenas, 2000.

NAJMANOVICH, D. O sujeito encarnado: questões para pesquisa no/do cotidiano. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

RANCIERE, J. O mestre ignorante: cinco lições sobre emancipação intelectual. Belo Horizonte: Autentica, 2002.

ZYLBERBERG, Tatiana Passos. Possibilidades corporais como expressão da inteligência humana no processo de ensino-aprendizagem. Tese de Doutorado. Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação Física. Campinas, SP: 2007.


Profa. Dra. Tatiana Passos Zylberberg é Licenciada, bacharel, mestre e doutora em Educação Física /UNICAMP. Professora do Instituto de Educação Física e Esportes (IEFES) – Universidade Federal do Ceará. Uma das coordenadoras do Laboratório de Estudos das Possibilidades de Ser (LEPSER).  Diretora da Divisão de Formação Docente (CASa/UFC).

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